Edição 120

Gestão Escolar

Sonhando com Paulo Freire

Grasiela Dourado

Esta noite eu tive um sonho. Um sonho cheio de boniteza, como ele mesmo descreveu tantas vezes. Sonhei que caminhava com Paulo Freire pelas ruas do Recife em um diálogo que não tinha fim. Conversamos sobre a sua história como educador e como poderia nos ajudar a avançar na gestão pedagógica contemporânea utilizando suas experiências.

Um brasileiro, nordestino, pernambucano, que recebeu vinte doutoramentos Honoris Causa, dados por universidades como as de Bolonha, Madri, Barcelona e Massachussetts, tem muito a contribuir conosco. Não é à toa que recebeu o título de Patrono da Educação Brasileira. Freire nos leva para a reflexão e a ação. Freire anuncia e denuncia!

Fiz muitas perguntas ao Mestre e refiz perguntas feitas a ele quando em vida e divido com você minha experiência onírica. Iniciamos nosso diálogo com um texto em que discute sobre a professora ter sobrinhos e ser tia, e deste texto eu guardo trechos marcantes na minha memória que é ativada cada vez que uma criança, não parente, me chama de tia. Freire alertava que, da mesma forma, uma tia pode ensinar sem ser professora. Professora como profissão não implica relação de parentesco.

Ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão, enquanto não se é tia por profissão (FREIRE, 1987).

É por isso que gosto muito de ser chamada de professora, a despeito de não negar o carinho da palavra tia. Minha profissão é professora! Mas não se trata aqui de pensar apenas na professora, no processo de ensino-aprendizagem, mas de extrapolar, de levar Freire para a gestão educacional.

Podemos, sim, pensar em como os meus textos podem ser úteis para qualquer pessoa que queira dar um sentido ao que Freire fala, independentemente de ser pai, educador, governante ou professor.

Nesse meu sonho, dialogo com o professor sobre as lições que são essenciais para uma gestão escolar democrática, focada no desenvolvimento do ser humano e na sua autonomia. Sintetizo aqui o que aprendi com e através de Freire!

maos_unidas_confraternizacao_AdobeStock_AdobeStock_181209114_RawpixelLição 1 – Não rotule

É uma pobreza muito grande classificar as pessoas, dar rótulos. O ser humano é maior do que os rótulos criados. Quando, na prática educativa, rotulamos as pessoas, as coisificamos. Freire nunca militou em partido político, mas sempre praticou uma “pedagogia desveladora das injustiças; desocultadora da mentira ideológica”, e essa condição o colocou como oponente dos exploradores. Foi rotulado de comunista sem nunca pertencer ao Partido Comunista.

Ao colocar as pessoas em caixinhas, você apequena o sujeito que muda, transforma-se, reconstrói-se continuadamente.

Lição 2 – Faça uma gestão democrática

Envolva as pessoas nas suas decisões, não só as consulte, não apenas extraia delas o seu conhecimento. Uma gestão democrática é consultiva de ponta a ponta.

Freire (2014) diz que o “Trabalhador enquanto educando tem o dever de brigar pelo direito de participar da escolha dos conteúdos ensinados a ele”. Ouvir sobre os sonhos, os anseios, envolver as pessoas nas decisões e no planejamento é dar um sentimento de pertença, é tirar da exclusão. É compromisso de quem não contrata apenas a mão de obra, pois o cérebro é o mais importante.

Lição 3 – Crie um método

A constância, a técnica, a metodologia são importantes para o desenvolvimento da gestão. Crie o trabalho de acordo com seus princípios e valores. Você e o método são uma coisa só.

Seja uma pessoa curiosa, pesquisadora, pense na autonomia dos sujeitos, na melhor forma de ensinar, numa prática educativa democrática e progressista.

Como gestor numa instituição de ensino, procure criar “um método de conhecer, e não um método de ensinar”. Analisar dados é importante para a tomada de decisão, mas dialogar com as pessoas, saber o que elas pensam sobre seu trabalho, sobre a importância dele, é o que dignifica e dá sentimento de pertença.

Lição 4 – Trabalhe com as pessoas

Se as pessoas trabalham para você, já releva uma relação de exploração. Se elas trabalham com você, independentemente de hierarquia, de classificação trabalhista, você pode contar com elas para que, em realizando seus sonhos, contribuam com o crescimento coletivo.

Pois “Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão” (Freire, 1987). Entender a si, do que é capaz e atuar com consciência do seu papel deve ser fundante para a emancipação do ser humano.

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.

Lição 5 – Se importe

Se importar verdadeiramente com o outro é colocá-lo para dentro. A palavra importa, etimologicamente, é relacionada à palavra porta, passagem, porto. Quando me importo com o outro, com as suas causas, trago-o para dentro de mim.

O bom gestor se importa não apenas com o que está dentro da sua porta, importa-se com as pessoas, não apenas com seus negócios. E se importar com as pessoas envolve sua vida, seus sonhos. E isso é um ato político, é uma opção!

Lição 6 – Garanta o conteúdo

Não existe gestão pedagógica sem um conteúdo, sem um projeto. Não existe processo sem conhecimento. Você aprende e ensina, mas isso não significa que todos são iguais, e sim que cada um é sujeito da sua própria aprendizagem. Cada atitude ensina, e, com cada reação e ação, aprendemos.

abra_o_familia_mulher_menino_AdobeStock_288330764_satura_Lição 7 – Não seja conteudista

Parece paradoxal falar que a pedagogia tem que ter um conteúdo e orientar para que não sejamos conteudistas. Para o conteudista, ensinar é transferir ao educando um pacote fechado de conhecimentos para que, mecanicamente, seja memorizado.

O gestor é o responsável, como maestro, por orquestrar a construção e a revisão curricular, dentre outras pautas, e, para isso, é necessário compreender que educar se dá em um processo de conhecimento onde “o educador tem uma certa tarefa epistemológica, e o educando tem uma certa tarefa epistemológica” (Freire, 2014), com níveis de conhecimento e aproximação diferentes.

Lição 8 – Conheça

Conhecer o mundo através das leituras, ter acesso a métodos, técnicas e ferramentas de gestão é importante. Olhar para fora é importante. Mas conhecer a história da instituição e a história das pessoas confere ao gestor uma outra compreensão. Olhar para dentro é importante.

O conhecimento está nas coisas, na vida, nas experiências. É sábio reconhecer o conhecimento que as pessoas acumularam durante sua vida. Somente sabendo como se faz, porque está sendo feito desta forma, um gestor pode analisar junto com sua equipe as mudanças necessárias para um processo. E partir dele para superá-lo através dele.

Lição 9 – Vá até o outro

O bom gestor não se tranca em gabinetes, vai até onde o outro está. Se fica um de cá e o outro de lá, não se comunicam, não criam laços. O gestor tem que vir ao conhecimento ingênuo do sujeito e partir com ele na busca da superação. E o professor bom gestor leva o seu aqui para o lá da equipe, não se contenta com o seu aqui de gestor e busca ultrapassar o seu aqui com todos os envolvidos.

Lição 10 – Busque a superação

Trabalhe para o outro ser maior que você, trabalhe para a autonomia, para o crescimento. Isso é existencial, é a razão da vida. Superar a ignorância que temos de nós, do mundo e das coisas e contribuir para que todos se superem.

E, num abrir de olhos, amanheceu — espreguiçar e acordar, inspirada nas palavras do Mestre Paulo Freire. Foi tudo um sonho ou podemos ser um gestor com estas pautas que mais parecem conselhos?

O conhecimento está nas coisas, na vida, nas experiências. É sábio reconhecer o conhecimento que as pessoas acumularam durante sua vida.”

Grasiela Dourado é pedagoga, com habilitação em Supervisão Escolar; pós-graduada em Metodologia e Didática; palestrante e consultora educacional; tem MBA em Gestão Estratégica de Pessoas e MBA em Bussiness Transformation.

Referências:
FREIRE, Paulo. Paulo Freire – uma entrevista, concedida a Mario Sergio Cortella e Paulo de Tarso Venceslau. Revista Prosa, Verso e Arte. Acesso em: 1º/06/2021 . FREIRE, Paulo. Entrevista com Paulo Freire, concedida a Nilcéa Lemos Pelandré e publicada em Periódicos ISFC. Acesso em: 1º/06/2021 .FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 78.

cubos