Edição 128
Como mãe, como educadora, como cidadã
A emergência da fome
Zeneide Silva
— Seu policial, a gente não tem o que comer aqui em casa. Minha mãe só tem farinha, fubá e água. Estamos com fome — disse o menino Miguel, de 11 anos, ao ligar para o 190, número de telefone para emergências policiais.
Quando li essa notícia inusitada, fiquei chocada e comovida, mas, ao mesmo tempo, orgulhosa da atitude daquele garoto, um dos oito filhos da dona Célia, que não consegue trabalhar por não ter onde deixar as crianças. Esse fato, ocorrido em Belo Horizonte, Minas Gerais, no comecinho de agosto de 2022, ainda está muito vivo na minha memória. E volta sempre para o foco das minhas reflexões. Como mãe, tocou-me profundamente ver o desespero e o desamparo daquele menino que não sabia mais o que fazer diante do sofrimento da família faminta. A desigualdade social e os alarmantes índices de pobreza da população brasileira são tão presentes nos noticiários que, às vezes, parece que nos acostumamos, naturalizamos a miséria humana. Ou, o que é pior, parte das pessoas reage com tanta indiferença que parece até que se conformou com essa realidade. Mas será que é possível acharmos natural alguém passar fome em um país que é um dos maiores produtores de alimento do mundo?
Combater a fome no Brasil, que atingiu, no ano que passou, a triste marca de 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar, que não têm nada para comer, é por si só uma situação emergencial. E, felizmente para Miguel e sua família, os policiais entenderam isso, sensibilizaram-se e conseguiram arrecadar alimentos para levar até eles ainda naquela noite. Mas quantas outras pessoas vivem diariamente algo semelhante?
Além do alerta sobre a urgência de tratarmos essa questão crucial da fome, a conduta de Miguel me trouxe outras lições importantes. Chamou-me a atenção, por exemplo, um menino tão novo ter tomado a iniciativa de buscar uma solução para o problema que afetava sua família quando o que vemos hoje na sociedade, principalmente entre os mais jovens (e não só), é o predomínio de comportamentos individualistas, focados apenas em seu próprio benefício. Miguel percebeu o sofrimento dos irmãos e, ao ver sua mãe chorando, em vez de reclamar ou apenas se juntar a ela, foi procurar uma “saída”. E encontrou! A doação recebida na ocasião conseguiu garantir a alimentação daquela grande família por pelo menos 15 dias.
Outro ponto que Miguel revelou com sua atitude foi a relação de zelo e carinho pela mãe. Em tempos em que vemos cada vez mais famílias que mal convivem e uma comunicação violenta prevalecendo nos ambientes familiares, o gesto de afeto daquele menino chega como um bálsamo, um exemplo que acende a esperança por gerações que cultivem o carinho, a gentileza e a solidariedade constantemente no seu dia a dia.
Histórias como a de Miguel fazem a gente ter mais fé no futuro, porém também denunciam que ainda estamos longe de ultrapassar os tantos erros do passado. As desigualdades sociais e suas trágicas consequências estão entre as principais “feridas” do mundo contemporâneo, e, no Brasil atual, o aumento da população com fome retrata bem esse cenário. A gravidade do assunto fez com que a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) trouxesse essa questão para ser tema da sua Campanha da Fraternidade 2023: Fraternidade e fome. Além dos debates e das ações da própria Igreja, o objetivo é mobilizar a sociedade para que cada indivíduo seja um agente efetivo de combate à fome.
Com o lema Dai-lhes vós mesmos de comer (Mt 14, 16), a Campanha quer incentivar o engajamento dos cristãos em atividades concretas, que possam contribuir com a doação de alimentos, mas também fomentar ações que consigam erradicar a fome a longo prazo. Restaurantes populares, hortas comunitárias, mutirão de distribuição de comida, culinária com aproveitamento total dos alimentos são apenas algumas das ideias que podem fazer parte dessa missão grandiosa de combater a fome. E você, já pensou como vivenciar na prática a fraternidade, colocando-se a serviço dos seus “irmãos” que estão em condições desfavoráveis? Miguel já deu seu exemplo, agindo em prol do bem comum, tomando a iniciativa sem esperar pelos outros, cuidando da mãe e dos irmãos e mantendo a fé na humanidade. Ele só tem 11 anos, mas foi um gigante. Miguel não desistiu e, com sua atitude, transformou, pelo menos momentaneamente, a vida de toda a sua família.
Para terminar, deixo uma pergunta para mim e para você: o que podemos fazer para acabar com a fome?