Edição 126
Matéria Âncora
As lições de tia Lourdinha
Christianne Galdino
Aos 74 anos, a professora Maria de Lourdes Bezerra da Cunha é um exemplo de amor e dedicação à educação e não pensa em parar de ensinar nem tão cedo.
Na sociedade contemporânea, fomos nos habituando a desenvolver múltiplas identidades e a, nesse processo, misturar-nos às nossas funções. No caso de Maria de Lourdes Bezerra da Cunha, se alguém lhe perguntar quem é ela em uma única palavra, certamente a resposta será: professora.
Contando as duas escolas em que lecionou, já são 46 anos ininterruptos de sala de aula. E ela avisa logo: “Não penso em aposentadoria!”. Formalmente, Tia Lourdinha já cumpriu seu tempo de serviço no magistério, mas ainda não teve vontade de parar.
Casada com Arlindo Cunha, mãe de Romero e Rômulo e avó de Arthur, de 12 anos, e Lívia, de 8 anos, aos 74 anos Lourdinha se orgulha de já ter ajudado a formar centenas de alunos e atualmente recebe a terceira geração de muitas famílias, sendo a professora de alguns netos e filhos de ex-alunos seus. Dona de uma memória privilegiada, Lourdinha emana entusiasmo em cada palavra das tantas histórias que ela conta em detalhes sobre sua rotina em sala de aula. Ela confessa: “Para mim, cada dia é como se fosse o meu primeiro dia de trabalho na escola”, e esse espírito renovado com certeza ajuda no processo de reinvenção da sua prática de ensino, mantendo-a sempre atualizada.
Professora do Colégio Imaculado Coração de Maria, em Olinda, há mais de 41 anos, Tia Lourdinha é a representação perfeita de amor pela profissão. E foi guiada por esse afeto que ela enfrentou e venceu os desafios impostos pela pandemia da Covid-19, ultrapassando seus limites e conseguindo mais uma vez atingir seus objetivos.
É notório o seu compromisso com a aprendizagem, que é justificado por toda uma vida dedicada à sala de aula e, especialmente, às crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental. Foi em uma chamada de vídeo, muito à vontade com os recursos tecnológicos, que essa professora amorosa nos recebeu, com a simplicidade e a excelência dos grandes mestres, e partilhou sua história de amor à educação.
RC – Você sempre quis ser professora? Como é que essa história começa?
TL – Na verdade, não. Queria ser médica e cheguei a prestar vestibular para Medicina. Como fiquei na lista de excedentes, resolvi me inscrever no curso de Magistério do Colégio Rosa Gattorno. E, depois de formada, fiquei cinco anos ensinando lá mesmo, até me mudar para Olinda e fazer o concurso para entrar no Imaculado. Minha mãe, Lucila, que era professora e, por muitos anos, diretora de ensino da Escola Normal Pinto Júnior, sempre me dizia que minha vocação era a sala de aula, e, com o passar dos anos, vi que ela tinha mesmo razão.
RC – Mas por que sua mãe acreditava que você deveria seguir carreira de professora?
TL – Com apenas 10 anos de idade, eu, junto com duas das minhas irmãs, já dava aula de reforço às crianças do bairro com a intenção de ganhar dinheiro. Depois, quando estava cursando a antiga 7ª série, com 13 anos, participei de um projeto da Juventude Cristã do Colégio Vera Cruz em que íamos a alguns morros de Casa Amarela dar aulas às crianças e eu me sentia muito realizada. Então, percebi que a ideia de cursar Medicina era somente uma empolgação passageira, pois é na sala de aula que eu me sinto mesmo feliz.
RC – Você já recebeu convites para cumprir outras funções dentro da educação? E, se sim, por que não quis aceitar?
TL – Já fui convidada para assumir a coordenação pedagógica mais de uma vez, porém não quis, por apego às crianças mesmo. Amo estar em contato diário com elas e ver o desenvolvimento de cada uma. Gosto dessa relação direta, de acompanhar o aprendizado, de cuidar com afeto.
RC – Quem foi sua base pedagógica, sua principal referência?
TL – Paulo Freire, sem dúvida. Sempre foi e continua sendo minha inspiração e principal referência. Tive o privilégio de conhecê-lo pessoalmente, porque minha mãe era amiga da esposa dele, e foi esse Mestre quem intercedeu para arranjar uma vaga para que eu estudasse no Colégio Estadual do Recife. Entre seus tantos ensinamentos, que sigo até hoje, um dos principais é a condução afetiva da relação professor-aluno. É se importar e valorizar os saberes de cada estudante no processo de aprendizagem.
Com apenas 10 anos de idade, eu, junto com duas das minhas irmãs, já dava aula de reforço às crianças do bairro com a intenção de ganhar dinheiro.”
RC – Nesse sentido, durante sua trajetória de professora, o que destaca?
TL – São muitas as experiências exitosas, mas duas foram especialmente importantes. A primeira foi nossa participação no concurso Parceiros da Energia, da Celpe [Neoenergia Pernambuco], com um projeto ambiental que fiz com os alunos no qual a maquete foi toda construída com material reciclável. A turma, os pais e todo o colégio se envolveram no projeto. E o resultado é que fomos premiados, ganhando uma projeção nacional, além de eu ter recebido um computador e uma televisão e de os alunos terem ganhado cinco bicicletas novas como premiação. Outro projeto muito impactante aconteceu entre 2006 e 2010 e se chamava Lendo no Recreio. Recebíamos os alunos do Colégio Estadual Pintor Manoel Bandeira, vizinho ao Imaculado, e eles tinham acesso a livros e textos; ao final do tempo do projeto, apresentávamos juntos um jogral. Essa integração com alunos da rede pública foi tão produtiva que reverbera até hoje e melhorou muito o nível de leitura e interpretação das crianças.
RC – Qual foi seu principal desafio como professora até hoje?
TL – Quando começou a pandemia e tive que me adaptar ao ensino remoto, fiquei desesperada por não saber utilizar os recursos tecnológicos. Tinha medo de não conseguir, porque não tinha nenhuma familiaridade com computador e internet, fiquei bastante estressada com a situação. Achava que seria uma experiência negativa, mas, como gosto de desafios, enfrentei, buscando ajuda para dominar a tecnologia. E, quando aprendi, percebi os benefícios daquela novidade, das novas habilidades que desenvolvi. Senti como aquela situação, inicialmente estressante, trouxe benefícios e como os novos aprendizados estavam sendo úteis para mim. Ganhei novas possibilidades de ensino, novas metodologias. Depois que passei por esse desafio, nada mais me assusta.
RC – Você já sentiu algum tipo de preconceito ou pressão para se aposentar, por causa da sua idade?
TL – Sei que o preconceito e a pressão existem e que muitas pessoas idosas que decidem continuar trabalhando sofrem com isso. Mas eu, particularmente, nunca senti, talvez porque me mantenho atualizada, estudo diariamente para responder às possíveis perguntas dos meus alunos. E também porque existe uma coesão muito grande na equipe do colégio, então me sinto integrada e apoiada.
RC – O que você diria a alguém que quer seguir a carreira de professor?
TL – Nas instituições brasileiras, o professor ainda é muito desvalorizado, costumam exigir tanto e oferecer tão pouco retorno. Então, desenvolver um espírito resiliente é fundamental. Manter-se estudando também é importante. Mas o afeto é o que considero realmente imprescindível. Sou rigorosa, prezo pela disciplina, mas sempre com muito carinho. Os pais costumam me dar um retorno positivo, dizem que eu consegui fazer com que seus filhos gostem de estudar. E isso é o resultado do meu próprio gosto pelo que faço e dessa minha opção por uma condução afetiva do processo de aprendizagem. Então, o que eu digo é: eduque com amor, que você chega lá! Eduque com amor, que tudo vai dar certo!