Edição 91

Matérias Especiais

Cidadania na pós-modernidade e a escola – vivenciamos uma cidadania efêmera?

Rosangela Nieto de Albuquerque

Nunca se falou tanto em cidadania e em direitos humanos como nas últimas décadas. Essa temática permeia diferentes instâncias da sociedade: os movimentos sociais, as organizações sindicais, as instituições governamentais e não governamentais, os meios de comunicação, os partidos políticos e a escola. O processo de redemocratização da sociedade brasileira incitou o diálogo sobre essas questões, após um extenso período de mutilação da cidadania em que foram cerceados os direitos civis e políticos, certamente devido ao gap entre o direito proclamado e a sua concretização. O art. 5º da Constituição Federal afirma: “Formar o cidadão é dar as orientações básicas de respeito e de condição social”. E o que é condição social? Ela constitui um cidadão? Condição social é dar educação de qualidade para todos? É termos políticas públicas para desenvolver a leitura, a escrita e a compreensão do mundo? É ensinar a pensar e desenvolver a criticidade? Talvez não tenhamos a resposta certa nem a saída para formar cidadãos “de verdade”, porém, sem dúvida, sabemos que o caminho a ser percorrido para se promover a cidadania é através da educação. Claro que, sozinha, a escola não consegue avanços significativos, é necessário um contexto multifatorial, mas a escola poderá dar seu passo inicial orientando o aluno a respeitar o próximo, conviver com as diferenças, pensar coletivamente, conhecer os seus direitos e as suas obrigações e ter objetivos e projetos para o futuro em coletividade.

Direitos humanos e cidadania

Hoje, fala-se muito em direitos humanos, em atitude cidadã, em mecanismos humanitários, e têm-se leis e pactos de garantia e proteção aos direitos humanos e à cidadania, que se apresentam na “Constituição Cidadã”, em que se estabelece a ênfase na ampliação dos direitos e nas dimensões social, cultural, civil e política. No entanto, apesar do avanço da democracia, o campo do ordenamento jurídico não se desenvolveu no quesito políticas públicas, no que diz respeito a assegurar, à maioria da população, os direitos fundamentais, enfaticamente os sociais, no sentido de fortalecer o regime democrático.

Observa-se então que se vive numa permanente dicotomia — o desrespeito aos direitos humanos e a negação da cidadania —, não pelos sujeitos, mas pelo Estado.

Nesse contexto, o modelo capitalista corrobora a exclusão caracterizada pela concentração de renda, um dos fatores da desigualdade, da discriminação e da violência. Na educação, apesar dos avanços em relação ao quantitativo de crianças na escola, não se avança de forma homogênea em todo o País. Assim, com tantas diferenças econômicas e sociais, isto é, multifatoriais, chega-se à questão do comportamento da população, que, na política neoliberal, não favorece a solidificação da cidadania. Surge então o conceito de sociedade líquida, criado por Bauman, que traz uma contraposição à modernidade sólida. A sociedade líquida não pensa a longo prazo, não consegue traçar projetos de longa duração e concretos para a humanidade, há, explicitamente, falta de objetivos. No século XX, o sujeito mantinha a “utopia” da esperança, embasada no potencial humano de transformação, isto é, acreditava-se que o mundo deveria ser mudado, precisava-se de interações entre grupos, movimentar nações, engajar pessoas; no entanto, a sustentação da utopia sucumbiu e a sociedade do século XXI apresenta-se desordenada e desregulamentada.

A grande questão eclode no início deste século, que não é mais a de fundamentar os direitos dos homens, mas de garanti-los, conforme ressalta Bobbio (2012): “O problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político”. Certamente, não se busca saber quais e quantos são os direitos e qual a sua natureza e o seu fundamento. A educação, em seus Parâmetros Curriculares Nacionais, apresenta uma proposta de organização curricular pautada então na perspectiva da educação comprometida com a cidadania, elegendo os princípios norteadores: dignidade humana, igualdade de direitos e participação e corresponsabilidade pela vida social (Documento de Introdução dos Parâmetros Curriculares — MEC/SEF, BRASÍLIA, 1997).

Um fator preocupante no comportamento da população é que, no Brasil, as desigualdades econômicas e sociais apresentam-se como uma normalidade, pois não são percebidas como injustiças graves por aqueles que as sofrem. No conjunto dos dados estatísticos, o Brasil atravessa uma crise econômica e social que se apresenta de forma mais visível nas grandes cidades, e essa crise tem se agravado nos últimos anos com o fortalecimento do projeto neoliberal, que não favorece a efetivação da cidadania.

Então, é importante enfatizar a necessidade da construção da cidadania na escola. Neste cenário de elevado desinteresse e crescente desconfiança, como a escola pode contribuir para a formação de efetivos cidadãos, envolvidos com o próximo, com as diferenças, mobilizados e ativos politicamente, participativos, e que pensam a longo prazo no futuro da humanidade?

3É claro que a escola sozinha não dá conta de formar o cidadão, tendo em vista que a formação da cidadania vai além dos muros da escola. Ela é forjada no conjunto das organizações da sociedade e no dia a dia das relações dos indivíduos. O principal determinante para desenvolver a cidadania é promover o nível de consciência e de conhecimento que o educando tem de seus direitos e deveres, além de uma vivência cidadã que se efetiva no campo individual, mas, principalmente, enquanto sujeito coletivo.

É importante ressaltar que isso requer um trabalho compartilhado e participativo de todos os atores sociais, e se faz necessária a efetivação de uma política educacional voltada também aos educadores, pois a apropriação dos conhecimentos básicos dentro de um contexto histórico e político dos direitos humanos e da cidadania exige mudança de valores, de atitudes e de posturas.

Essa mudança requer a apreensão de uma nova cultura em que o educador se perceba e que também perceba o aluno e os demais integrantes do trabalho escolar como sujeitos de direitos e deveres e que “veja” e “sinta” a escola como espaço de exercício permanente de construção coletiva da cidadania. É fundamental ter a escola como locus de formação da cidadania democrática, compreendendo que a formação da cidadania está imbricada na percepção que se tem de democracia e direitos humanos em um determinado contexto social, cultural, político e econômico.

Certamente, o regime democrático é o que oferece melhor condição para o respeito e a efetiva realização dos direitos humanos; portanto, para a formação da cidadania. Para Comparato (1989), democracia é sinônimo de soberania popular, com total respeito aos direitos humanos, fundada nos princípios da liberdade e da igualdade. Para o autor, igualdade, diante da lei, é a garantia do acesso aos bens sociais e às condições básicas necessárias a uma vida digna para todos os indivíduos; e liberdade, algo inerente à condição do ser humano, em termos de liberdade de expressão, de pensamento, de ir e vir, de participar e de intervir na construção do projeto de sociedade em que o indivíduo está inserido.

Não se pode deixar de enfatizar que, em condição primeira, direitos humanos emergem do pressuposto do direito à vida, sem a qual deixam de existir os outros direitos, e do reconhecimento da dignidade intrínseca ao ser humano, são direitos fundamentais a toda pessoa, sem distinção de etnia (raça), de credo religioso, de nível de instrução, opção sexual, opinião política, sexo, posição socioeconômica, julgamento moral ou nacionalidade. Cidadania, na perspectiva democrática, certamente é a materialização dos direitos legalmente reconhecidos e garantidos pelo Estado, que inclui o exercício da participação política e o acesso aos bens materiais. É, também, a condição de participar de uma comunidade com valores e história comuns, que permitem aos indivíduos uma identidade coletiva. Isto, sim, é, na verdade, o pleno exercício do direito.

Nesse sentido, a escola, em sua práxis pedagógica, voltada para a construção da cidadania democrática, precisa, especificamente, desvincular a cultura autoritária, de mando, de submissão, impregnada nas diferentes relações sociais. Precisa-se criar uma nova cultura e garantir o acesso ao conhecimento que permita apreender a complexidade das relações, a partir do qual todo e qualquer indivíduo é portador de direitos e deveres, preparando-o para a sua inserção no mundo do trabalho e a participação ativa na organização da sociedade.

Para que a escola possa desenvolver uma sociedade cidadã efetiva, faz-se necessária a construção de um projeto pedagógico, democrático e participativo, em que a formação do sujeito possa ser assumida coletivamente.

Cidadania efêmera

Vivenciamos uma cidadania efêmera, o fim das utopias deu origem à perda do caráter reflexivo em relação à sociedade e, por consequência, à perda da noção de progresso como um bem que deve ser partilhado. Observa-se a busca do prazer individual em detrimento do coletivo — isto é a característica da sociedade líquida. Em sua obra Vida Líquida (2007), Bauman apresenta como essa liquefação alcançou a família, a sexualidade, a constituição do indivíduo enquanto sujeito, a política, os meios de comunicação, a própria ciência e o futuro cidadão. Esta liquefação alcançou os paradigmas e finalmente se transformou em um novo paradigma, o do movimento contínuo, o da fluidez, o da constante novidade e a obsolescência de todos os sentidos: o modelo consolidado é o “não modelo”.

Para Bauman (2007), a sociedade atual é desregulamentada, o mercado é que dita as regras, e essas regras do mercado são marcadas pelo objetivo econômico capitalista, que permeia a aniquilação dos concorrentes e o sucesso com os consumidores. A vida também passa a ser desordenada no momento que não há mais as evidentes divisões que antecediam a pós-modernidade (divisão do bloco comunista e do bloco capitalista).

Vivemos uma corrente de incerteza e insegurança constituída no sujeito pós-moderno, que não tem mais referencial para construir sua vida, a não ser ele mesmo. A liquidez da sociedade se dá pela sua incapacidade de tomar forma fixa. Ela se transforma diariamente, toma as formas que o mercado a obriga tomar, não propicia a elaboração de projetos de vida (como ter um emprego para toda a vida), estes já não existem mais. Percebe-se um cidadão efêmero, e sua postura cidadã passa, transforma-se, conforme o momento.

Assim, Bauman (2007) remete à utopia, que passa a ser deixada de lado na sociedade líquida; a condição humana é tomada por uma angústia e insegurança insustentáveis. Para ele, os resultados desse movimento de competição e fluidez social são gravíssimos e incidem em várias esferas das relações humanas. O medo se torna líquido, um modo de vida que acompanha o sujeito pós-moderno em todos os lugares: uma vertigem que lhe persegue e o conduz velozmente para frente, mesmo sem querer nem poder. O medo de ficar para trás na esfera social proporciona outros medos, estes, sim, sociais e globalizados, e a consequência desse medo é o resultado social da indiferença moral, uma consequente desumanização, certamente fruto de uma instrumentalização do sujeito: um sujeito fluido, obrigado a competir, mergulhado em medos, sujeito-mercadoria. O mundo líquido é uma irrealidade, repleto de ameaças, mera aparência, que raramente se materializam, no entanto latentes o tempo todo. Portanto, este mundo ficção é extremamente frágil, onde tudo pode se desfazer num instante, é efêmero, assim, como o líquido assume muitas formas: da insegurança, do medo de perder o emprego, medo da exclusão, medo de lutar pelos seus direitos, medo de ser cidadão, medo de ser… constitui-se então uma cidadania efêmera.

Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação, pós-doutoranda em Psicologia Social, doutoranda em Psicologia Social, Mestra em Ciências da Linguagem, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, coordenadora de cursos de pós-graduação em Educação, psicopedagoga clínica e institucional, analista em Gestão Educacional, pedagoga. Autora de projetos em Educação, autora da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia como projeto social. Autora de três livros: Neuropedagogia e Psicopatologias, Psicoeducação e Neuropsicologia.
E-mail: rosangela.nieto@gmail.com

Referências

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