Edição 114

Profissionalismo

Educação: da sociedade do conhecimento à sociedade híbrida

Diva Carneiro do Nascimento

Não há nada permanente,

exceto a mudança.

           Heráclito, século VI a.C.

Em junho de 2000, o professor Moacir Gadotti, da Universidade de São Paulo, escreveu o artigo Perspectivas atuais da educação1, que buscava uma compreensão aprofundada da educação na virada do século vinte para o século vinte um. E mais, buscava colocar em perspectiva as “práticas e teorias que atravessaram os tempos” (GADOTTI, 2000) e marcaram o pensamento educacional brasileiro. Assim, para compreender a educação naquele momento era necessário pensar sobre algumas questões imprescindíveis, possibilitando, talvez, antever uma educação no futuro próximo. Entre tais questões estavam o contexto marcado pela globalização e pela era da informação. No artigo em questão, Gadotti levantava ainda questões sobre as mudanças ocorridas no final do milênio, tanto nos campos socioeconômico e político cultural quanto nas ciências e na tecnologia, importantes para o debate educacional.

Alinhado a esse pensamento, mas ampliando para toda a sociedade, alguns anos antes o sociólogo espanhol Manuel Castells (1996: p. 414) refletia no seu livro A sociedade em rede que

O surgimento de um novo sistema eletrônico de comunicação, caracterizado pelo seu alcance global, integração de todos os meios de comunicação e interatividade potencial, está mudando e mudará para sempre nossa cultura.

Se formos listar todos os autores, principalmente os das Ciências Sociais e Humanas, que buscaram de forma pioneira estabelecer um debate sobre o impacto da tecnologia no espaço social e consequentemente no espaço da educação formal, teremos um número significativo que, de forma direta ou indireta, enfatiza a irremediável ocupação do cotidiano das pessoas e por conseguinte das escolas pela cultura digital.

Em 1o de janeiro de 2001, iniciamos o novo século (XXI). Iniciamos também o terceiro milênio após o nascimento de Cristo. As mudanças no campo da tecnologia levaram a uma demanda crescente nos primeiros dez anos no Brasil. Com um crescimento cerca de 25% em relação ao ano anterior, o Brasil chegou à marca de 40 milhões de computadores em 20072. A inclusão do computador e da rede como imprescindíveis nas diversas atividades, seja profissionais, seja domésticas, no lazer, na saúde e na educação, não foi do dia para a noite, já vinha sendo pensada e aperfeiçoada até a sua total popularização. Qualquer ferramenta de pesquisa apontará que o primeiro computador pessoal de dimensões portáteis foi lançado em 1976, pela Apple. E na Internet, pelo menos no Brasil, os primeiros embriões surgiram na década de 1980. Após a virada do século, as crescentes necessidades, que exigiam velocidade e diminuição das distâncias globais, fizeram aumentar a demanda entre os cidadãos de todas as classes sociais por alguma forma de comunicação através das redes de telefonia e da Internet, pois os novos tempos traziam um novo tipo de espaço a ser ocupado, o ciberespaço, onde nascia uma nova forma de cultura, a cibercultura.

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Todavia, as mudanças ocorridas no calendário, inclusive aquelas que alteram conjunturalmente as relações da sociedade, necessariamente não são acompanhadas por novas mentalidades3. Estas são potencialmente as que inauguram novos tempos históricos. Os processos econômicos e sociais e a mentalidade de uma época não se modificam com a mesma velocidade, o que é ratificado pelo historiador francês Ernest Labrousse, citado por Jacques Le Goff (1976: p. 69), “O social é mais lento que o econômico; e o mental, mais ainda do que o social”. Até 2019, podemos afirmar que vivíamos com a mesma mentalidade do final do século e milênio passados. E que, para Labrousse, citado por François Dosse (2017: p. 288), “A resistência das mentalidades vigentes é um dos grandes fatores da história lenta”.

Em meio a todas essas mudanças de final e início de século, a escola como um coletivo de indivíduos, denominada comunidade escolar — incluindo-se funcionários, professores, pais, alunos —, apresenta-se como uma coletividade importante de ser colocada em perspectiva para podermos entender a própria escola, a sociedade que a solicita e o tempo presente. Alguns autores já discutiram as mentalidades presentes no ethos4 escolar. Se observamos as falas dos sujeitos que estão imersos nesse cotidiano, identificamos uma narrativa própria que foi sendo construída ao longo do tempo sobre as práticas, o papel dos sujeitos, as regras escritas ou simplesmente praticadas, visões de mundo que encerram verdades, que, na maioria das vezes, não são verificáveis. Sobre isso, Le Goff afirma (1988: p. 72):

O discurso dos homens, em qualquer tom que tenha sido pronunciado — o da convicção, o da emoção, o da ênfase —, é frequentemente apenas um amontoado de ideias feitas, de lugares-comuns, de velharias intelectuais, o exutório heteróclito de restos de cultura e de mentalidades de diversas origens e de várias épocas.

As mentalidades presentes no ethos escolar são percebidas por professores e estudiosos de diferentes áreas, vistas como uma bricolagem de fazeres, hábitos, expressões e gestos. São percebidas — de outra forma, talvez, sem muita nitidez — por aqueles que buscam se aproximar desse ambiente com intenções várias, desde conhecer e apoiar o fazer pedagógico, com sua carga de tradição, que, se questionada por muitos, ainda é defendida por outros tantos, como se necessário fosse preservar as maneiras pelas quais se reproduzem mentalmente as sociedades (1988: p. 71).

Outros ainda buscam os espaços educativos para oferecer uma gama de produtos e serviços, algo bem comum no cotidiano escolar. Entre os que oferecem produtos e serviços que, na maioria das vezes, surgem como “salvadores da pátria”, existe uma gama de profissionais que se dedicou a produzir bens e serviços voltados à tecnologia da educação com vistas a sanar o que se convencionou chamar de problemas no ensino-aprendizagem ou, pior, fracasso da educação escolar. Após um rápido levantamento em dez livros escolhidos aleatoriamente, conseguimos muitas similaridades. Entre estas está a presença recorrente dos dois sujeitos desse fazer, os professores e os estudantes, como sendo a quem esses produtos e serviços se destinam. Todavia, em se tratando dos docentes, o discurso se orienta sobre uma possível dificuldade que eles ostentam no trato com a tecnologia. Todas as obras elaboraram comentários, e nestes foi possível analisar, a partir do texto que apresentavam, palavras que deixam ver como o espaço escolar é percebido por aqueles que não são familiarizados com ele, mas que precisam se aproximar do mesmo.

Os textos que apresentavam as obras, principalmente para os professores, organizavam-se notadamente em dois momentos: o primeiro, a realidade escolar como se mostrava; e o segundo, como seria a partir da inclusão tecnológica no espaço educativo. Assim, os textos, no primeiro momento, deixavam implícito, através de algumas palavras, que existia uma crise, que as dificuldades eram enormes e que os profissionais envolvidos não conseguiriam resolvê-las. Mas as palavras desnudam outras questões, denunciam que aqueles que querem resolver tais dificuldades não conhecem em profundidade o cotidiano escolar. Listamos algumas palavras e termos, que foram recorrentes, senão as mesmas, mas em relação a seus sinônimos, são elas: ambicionados, camadas mais espessas, arraigado, dissolvendo, enfrentamento, engessado, elevar, falharam, desafio, hábito nos molda, incorporar, infiltrar, instruir, mudanças no agir, nebuloso, oportunidade, orientação, realidade, sólidos padrões. Essas palavras foram escolhidas no contexto em que estavam. E esse contexto falava, grosso modo, de uma educação que não funcionava, que os sujeitos estavam atônitos e que a tecnologia, ou os novos formatos digitais, resolveria todo esse cotidiano caótico de não aprendizagem e de insucesso.

Os que propunham tais saídas para as desventuras da escola apresentavam toda uma mudança na forma, no conteúdo e nos resultados, ficando claro nas palavras e em termos usados: AVA, CAV, alterações organizacionais, atividades práticas, autonomia, blog, bom desempenho, bússola, comunicação, configurações, elevar patamar, evoluída, ferramentas tecnológicas, gamificação, guia, híbrido, ideais, imersão, impacto, letramento digital, metamorfose, motivação, realidade virtual e aumentada, recursos tecnológicos, redes sociais, revisão pedagógica, salto evolutivo, tecnologia é a teia, tecnologias interativas, telepresença, tempos mudaram, tendências na educação, transformações, etc.

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Dentre todas as palavras em que, na visão daqueles que pensaram os livros abordados, estaria a salvação da educação escolar, escolhemos a palavra híbrido para refletirmos sobre alguns aspectos da sociedade e da escola, uma e outra atadas como numa correia de transmissão. O porquê da escolha, podemos argumentar por conta da origem do termo, retirado das ciências da natureza, especificamente da biologia. Para essa ciência, “O termo híbrido designa um cruzamento genético entre duas espécies vegetais ou animais distintas que geralmente não podem ter descendência devido aos seus genes incompatíveis”5.

A mitologia também trata o conceito: para esta, “híbridos são criaturas mitológicas fruto da combinação de partes do corpo de mais de uma espécie real […] que aparecem nas religiões e no folclore de várias culturas como criaturas lendárias”.

Alguns textos da área de tecnologia apresentam o termo realidade mista ou realidade híbrida e definem como:

[…] a tecnologia que une características da realidade virtual com a realidade aumentada. Esta insere objetos virtuais no mundo real e
permite a interação do usuário com os objetos, produzindo novos ambientes nos quais itens físicos e virtuais coexistem e interagem em tempo real.

No início da segunda década deste século, surgiu o termo híbrido relacionado ao ambiente educacional. Os debates e as produções incorporaram o termo e buscaram alinhar a este as práticas educativas. Dez anos depois da popularização do termo relacionado à educação, multiplicaram-se as abordagens que apontam viabilidade em escolas híbridas, no ensino híbrido ou, de forma abrangente, em uma educação híbrida.

Entre os argumentos daqueles que defendem um ensino híbrido, estão a possibilidade em alternar o uso das diversas tecnologias da educação: presencialmente — através de suportes como lousa digital, smartphones, tablets e notebooks para acesso a softwares, aplicativos, jogos e livros digitais — ou a distância — quando são usados todos os citados em ambientes virtuais de aprendizagem AVA, através das plataformas educacionais. Não excluindo, contudo, as aulas presenciais expositivas ou organizadas em outras modalidade do fazer didático, utilizando para isso “tecnologias7 tradicionais”, como quadro, piloto, livro-texto, caderno e caneta. Entendendo esses materiais como tecnologias que participaram e participam ativamente como únicos existentes e acessíveis por longo tempo. Razão pela qual, na atualidade, não são desconhecidos, pois, tradicionalmente, estiveram presente na educação da maioria dos profissionais que se encontram em plena atividade.

Outros argumentos que defendem o ensino híbrido apontam que este garantiria mais autonomia aos estudantes, possibilidade de individualização das aprendizagens através da construção de roteiros de estudo, mais liberdade para o desenvolvimento de projetos e sistematização das aprendizagens, possibilitando disciplina nas rotinas de estudo e reensino nas lacunas de aprendizagens já ofertadas.

Podemos ainda argumentar que a opção híbrida traz amplas possibilidades, uma vez que a maioria da população brasileira está submetida de alguma forma a uma sociedade híbrida, ou seja uma sociedade que cotidianamente realiza uma gama de atividades que envolvem seres naturais ou artificiais. Por exemplo, ao solicitar produtos ou serviços não importando se estamos nos comunicando com humanos ou máquinas. Concluímos, assim, que transitar na sociedade atual requer dos sujeitos, independentemente de classe, credo, cor ou localização, em um nível maior ou menor de dificuldade e de acesso, mas não de desconhecimento, muito menos de espanto, transitar entre linguagens com matrizes diferentes em um cotidiano carregado de signos diversos. Na atualidade, algumas atividades não distinguem a ação humana da ação de uma inteligência artificial. Os avanços nesse campo já apontam uma área de atividade denominada Humanidade Digital (Digital Humanit).

O século passado (XX) foi espetacular, estruturou e foi estruturado sobre uma Sociedade do Conhecimento, conceito elaborado na década de 1961 pelo sociólogo Peter F. Drucker. Hoje, todo conhecimento elaborado se desenvolve e se reelabora incontrolavelmente, de forma global e veloz, em uma rede mundial de computadores, num ambiente denominado ciberespaço. Os sujeitos nativos desse tempo entendem e se relacionam com desenvoltura com todo esse aparato tecnológico; a dificuldade não reside na não compreensão desses suportes e desses caminhos virtuais, a dificuldade se dá pela não garantia de acesso a todos indiscriminadamente. As dificuldades residem nas escolhas que são feitas pelos que, de fato, podem escolher.

Podemos arriscar a dizer que o século XXI começou em dezembro de 2019, quando a espécie humana foi encurralada por um vírus contagioso e letal. As cidades foram esvaziadas, as atividades foram reformuladas, algumas novas relações surgiram e outras foram reelaboradas. Dentre as mudanças, algumas foram melhores; outras, piores. Mas, definitivamente, aqueles sujeitos que acessaram amplamente o ciberespaço disponível na sociedade híbrida reorganizaram suas atividades de modo que permaneceram on-line, para se comunicar, estudar, produzir, divertir-se, consumir. Enfim, viver. Desfrutando uma infinidade de possibilidades em formatos e conteúdos diversos.

O que podemos concluir, mesmo que provisoriamente, é: vivemos em uma sociedade que dialoga com o natural e o artificial, que transita de um ao outro. Potencialmente, temos um aparato tecnológico que pode substituir o esforço humano em uma gama de atividades. Isso é real para muitos, mas não é real para todos. No cotidiano desses tempos, essa realidade se impõe e nos desafia a modificá-la. Os docentes e os estudantes são sujeitos desse tempo híbrido. Para alguns estudiosos, “Essa sociedade é igualitária desde que não sejam feitas distinções entre humano ou artificial”8; para outros, a “Hibridação é uma das maneiras de tornar proveitoso um conhecimento que já temos”9.

Podemos concluir dizendo que a escola é um ethos que reúne aqueles que acessam espaços e ciberespaços, culturas e ciberculturas e aqueles que continuam acessando os mesmos espaços e conteúdos que seus pais, avós e bisavós acessaram. Os docentes conhecem esse real e buscam agir no espaço natural compartilhado por todos.

Pois,

Na sociedade híbrida, seres artificiais competem e compartilham técnicas computacionais e desenvolvimentos heterogêneos, integrando e adquirindo uma cultura, neste caso, ligada ao humano, ou seja, uma “cultura híbrida”.

Contudo, as mentalidades resistem no interior da escola da sociedade híbrida; sua justificativa, ainda é necessário investigar; contudo, ouçamos o que nos diz o historiador de sociedades
do passado.

Os homens se servem das máquinas que inventam conservando as mentalidades anteriores a essas máquinas. Os automobilistas têm um vocabulário de cavaleiros; os operários das fábricas do século XIX, a mentalidade dos camponeses, seus pais e avós. A mentalidade é aquilo que muda mais lentamente.

Diva Carneiro do Nascimento é graduada
em História, Mestre em Educação, Sociedade,
Política e Cultura pela Unicamp e professora
da Rede Pública Estadual de Pernambuco.

BRAUN, Daniela (4 de junho de 2007). «Base
instalada de computadores cresce 25% em
um ano e atinge 40 milhões». Computerworld. Acesso em 08.07.2020.
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