Edição 116

Profissionalismo

Escutatória: escutar para compreender, viver melhor com o outro

Nildo Lage

O que fazer? Silenciar? Se silenciar, não direi o que o outro quer ouvir! Mas, se falar, posso falar o oposto! E até não dizer absolutamente nada com milhões de palavras… Por outro lado, se ouvir tudo à minha volta, posso entrar em contradição… Nesse caso, é preferível gritar… Gritando, prepondero, silencio vozes… Entretanto, se calar, posso escutar e escutar; pode ser mais importante que falar… Falando, posso magoar, ser magoado! Mas, se eu não falar, não venderei o meu peixe!balao_fala_shutterstock_1151217977_Yummyphotos-02

É… Os sábios asseguram que saber escutar é sabedoria, um privilégio para poucos. Sendo assim, é preferível escutar! Posso escutar o problema do outro, os sonhos do outro… E eu? Todos querem falar, todos querem ser ouvidos… Assim, qual a alternativa? Ouvir ou escutar? Não sei… Estou perdido… De volta ao começo… Ouvir ou escutar? Acredito que seja ouvir… Ou será escutar?

Perdi de novo! A alternativa é solicitar auxílio… Buscar referência na fala do mestre Rubem Alves: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir”.

Parafrasear Rubem Alves para entendermos o sentido da escutatória, não somente no espaço escolar, mas na vida do humano que busca recursos para desenvolver a oratória para garimpar espaço e que, muitas vezes, tropeça por se envolver em situações imprevistas, por ignorar o escutar, como se o falar fosse a extraordinária ferramenta para persuadir.

Partindo desse pressuposto, é preciso educar o falar? Mas quem ousa trabalhar o escutar? Escutar é um processo que estabelece atenção, disciplina. Para desenvolver essa habilidade que proporciona acordo para que o outro possa se pronunciar, é preciso recorrer a uma mediadora: a educação. E a educação admite: escutar de verdade, nos dias de hoje, é uma mentira. A evolução social escoltou a evolução tecnológica, e essa realidade é refletida num ângulo tridimensional. Na maioria dos lares, esposa, esposo, pais e filhos se comunicam mais pelos aplicativos multiplataforma, como WhatsApp, do que pessoalmente… Em casa, o convívio é abreviado com “Oi”, “Sim”, “Não”, “Não sei”, “Aham”… Enquanto o outro gesticula, implorando resquícios de atenção, porque precisa ser ouvido, notado… Sentido.

Calar para escutar pode conquistar não apenas o outro, mas o propósito que se acredita atingir com o poder da fala, pois o que se ouve pode ser esquecido no instante seguinte, mas o que se escuta, além de instruir, pode conduzir a um terreno que somente uma minoria alcança,
o da reflexão.

Temos ciência de que é complicado escutar, principalmente nos momentos em que esperamos que o outro silencie, incline a cabeça e aguce os sentidos para que o nosso falar seja o revés, a saída… Pois descontinuar, observar e verdadeiramente escutar decreta mais que educação, ética, profissionalismo… É essencial sensibilidade. Sensibilidade para compreender que o outro é o agente do seu querer, gestor do próprio destino… Querer que transcende a própria vontade… Destino que lhe concede a liberdade para escolher, e, muitas vezes, essa liberdade aborda as fronteiras dos próprios direitos, pois é no nosso silenciar que a verdade do outro retine.

Esse silenciar harmoniza a arte de viver com a própria vida, ressaltando que escutar não somente aproxima, mas auxilia no desenvolvimento de habilidades sociais. Mesmo se escolhermos ser ilha, temos que permitir que o outro aborde, ancore, se relacione… Por que não relacionar sem tantos conflitos?

“Eu quero! Eu posso! Por isso, eu faço!” E, como todos querem mandar, todos querem atenção, todos querem ser ouvidos, decreta-se que se detenha e silencie para escutar…

O entrave é compreendermos que, no tempo em que a comunicação é arte para todos os campos de atuação, tais habilidades transcendem as ações que facilitam o conviver, podem arremessar líderes natos num mercado onde “manda quem pode e se submete quem necessita estar no mercado para sobreviver”. Isso é cada vez mais natural — a exemplo da embaixadora das Filipinas no Brasil, flagrada agredindo uma funcionária no interior da residência diplomática.

O planeta declinou por não resistir ao peso das ações do humano, que não apenas se enclausurou em torno de si mesmo, como particularizou o próprio viver. Tudo o que impera é a vontade do eu. “Eu quero! Eu posso! Por isso, eu faço!” E, como todos querem mandar, todos querem atenção, todos querem ser ouvidos, decreta-se que se detenha e silencie para escutar… Assim, o outro se detém, ouve e faz de conta que está escutando, porque a necessidade do outro de ser escutado descontinua a sua necessidade de conquistar… E as suas conquistas não estabelecem que escute, apenas ouça, desconhecendo que toda história tem dois fluxos e múltiplas variantes. A minha é apenas uma. O final que almejo. Não importa o início, o meio, basta que o fim seja aonde cobiço chegar.

Como desenvolver habilidades da escutatória numa geração que foi instruída para não escutar? É abstruso, pois a geração alfa não fala, grita. A geração alfa não escuta, ouve e zoa… O afã da modernidade não permite interromper para encarar o outro. O mínimo que sobrevém é uma observação para não perder tempo… Silencio, ouço e fui… Ouvi suas queixas, suas opiniões… Agora vai para lá, que as minhas coordenadas me arremetem em direção oposta.

O que perpetrar? Ouvir? Escutar? Silenciar? Perdi de novo! De volta ao começo! Muitos dizem que o silêncio fala mais que mil palavras… Mas como? Se nunca ouvi o meu próprio silêncio, como ouvir o silêncio do próximo?

Reconheço que cada ser é um universo, um mundo singular. Como sei também que cada olhar tem a sua ótica… Podemos encarar o mesmo horizonte e entrever tons diferentes, formatos diferentes… Cenários diferentes… Mas o que isso tem a ver com escutatória?

O mestre Rubem Alves sinaliza que aproximadamente tudo. Pois, assim como com o olhar na mesma direção é possível visualizar horizontes distintos, a necessidade do outro — de ser escutado — pode não ser a nossa necessidade. Porém, podemos desdobrar como sinal de acolhimento, conduzir para um banquinho, sentar, silenciar e permitir que o outro fale.

Sentar, silenciar, olhar no olhar do outro e escutar é tão fundamental quanto ser ouvido? É! Pode ter sentido. Pois quem escuta não apenas para para atender a um chamado… Quem escuta absorve o falar do outro, e isso vai além do ouvir… Tem sentido — pode não ser figurado, mas tem sentido. Se não sou surdo, posso ouvir o grito de socorro do outro; por que não paro para escutá-lo? O meu escutar pode ser o auxílio que necessita. Se ouço o grito do mundo e paro para observar, por que não escuto os sussurros da razão?

Sei que, quando a razão fala, incomoda… Sua exclamação ressoa num tom que chega a retinir no ninho da consciência… Silencia na distância, mas deixa o eco que impacienta, pois a voz da razão impele a interromper os passos para escutá-la. Do contrário, teremos que recuar para que essa voz exponha ao eu que tudo é alienação.

São raros os que permitem imperar o silêncio para que o outro fale… Poucos assumem uma postura sincera para escutar de verdade. O mundo se converteu num motim onde todos querem falar. Todos querem salientar superioridade… E é preciso interromper o ritmo, principalmente num instante em que o planeta se tornou refém da Covid-19, estabelecendo, aos seus habitantes, o distanciamento físico.

Quem contrai o vírus ou é salvo por um milagre ou morre. Tudo sobrevém num espaço tão breve que muitos não têm tempo nem de pedir perdão, despedir-se dos entes queridos. Quantas declarações foram contidas e silenciadas eternamente por ausência da prática da escutatória? Quantos “Eu te amo!”, quantos “Eu preciso de você!” e até mesmo quantos “Senta aqui e me escuta!” foram asfixiados por não termos dado a oportunidade de escutar o outro?

Escutar, de tão fundamental, pode sobrepujar um mal que assola multidões: as fakes. Muitas vezes, ouvimos e repassamos… Repassamos como ato automático, sem nos preocupar em verificar a veracidade, tampouco as consequências… Se tivéssemos o cuidado de parar para escutar, poderíamos analisar antes de passar adiante.

Praticar a escutatória é admitir que o outro, mesmo tendo olhar diferente, trilha caminhos diferentes, é pessoa como nós, pois, assim como nós sonhamos, o outro também sonha; assim como ambicionamos, o outro também ambiciona, especialmente, ser feliz… E não podemos permitir que as diferenças se convertam em barreiras que apartam, que impedem que o outro seja compreendido, tão somente, por não o escutarmos. A trajetória viver nos ensina a cada instante que não escutar é tão fatal quanto arremessar o outro num precipício sem lhe dar a oportunidade de fazer escolhas, pois o nosso não escutar pode alargar a profundidade do precipício que absorve o outro.

Nessa passagem, escutatória se converte num dilatador de olhares. Quando escutamos, permitimos que o nosso olhar se dilate para distinguirmos os reveses que nos impedem de nos aproximar e compreender o outro. Simplesmente, por não falarmos a mesma língua, não o escuto, e, como o grito impera, os seus ecos retinem como resposta. Ao ouvir o que o outro teve num instante de transição, o meu não escutar refletiu não apenas irreverência, mas a incapacidade de focar em mim para auxiliar o outro, por não exercitar a simples ação de escutar.

Sob os efeitos de tantos reveses, ainda é preciso perguntar: por que escutatória?

Mesmo o humano sendo dotado de habilidades para jogar com as palavras, competências para fazer malabarismos com os versos, jogatina com as frases, suas dantescas habilidades para dominar a oratória não suplantam a maior deficiência: o não escutar… Escutar o outro, inclinar para escutar o próprio silêncio para que a voz da razão possa retinir é sabedoria. O simples ato de interromper para escutar o outro, para muitos, chega a ser humilhante. Pois, muitas vezes, é preciso se declinar para escutar melhor.

mulher_conversando_2_shutterstock_1151217977_Yummyphotos-03Ninguém quer se curvar ante o próximo. Todos têm consciência, mas poucos admitem: é preciso se desarmar, arrombar as próprias argileiras de defesa para que o outro se aproxime. Estamos sempre de prontidão, aparelhados para atacar com a poderosa arma crítica; e, para não nos curvar, salientamos força e determinação, mesmo tendo ciência de que necessitamos das mesmas coisas. Mas resistimos para camuflar o que mais nos incomoda: as nossas fraquezas.

Tais atos trituram a ação que aproxima escutar para compreender o falar, o escutar para visualizar o olhar do outro… Escutar é a rota que nos conduz ao eu do outro… Todavia, escutar estabelece emudecer, silêncio, e ninguém quer calar para ouvir. Os que cedem, conseguem, na eloquência desse silêncio, abordar o refúgio do próprio eu, pois, inconscientes, deram a si mesmos a oportunidade de certificar-se que o outro é pessoa como ele. E, por ser como ele, depende de coisas simples, pequenos gestos para ser reconduzido pelo caminho. Pois, assim como necessito de gestos, ser ouvido para suplantar obstáculos, o outro também precisa.

Essa consciência desperta quando nos encontramos conosco e descobrimos os limites e as limitações com que as fraquezas nos posicionam. É nesse instante que interrompemos o avanço para contemplar nosso interior, e, antes do próximo passo para tentar desvendar os mistérios do outro, o alerta: é preciso voltar o olhar para dentro de nós e reconhecer a nós mesmos como seres imperfeitos, frágeis, que necessitam aprender a regra maior do se relacionar com o outro: assim como falar, muitas vezes, é insensatez, emudecer para escutar é sabedoria.

A queda dessa ficha alarga os horizontes do olhar, que visualiza o silêncio como plataforma para inserir o aprender a viver melhor com o outro e o segundo despertar, que é alerta para cada um de nós: sempre que quisermos entender o valor de um gesto, desçamos ao abismo da indiferença ou façamos uma visita ao museu das decepções… Todavia, se pretendermos compreender a importância do silêncio, convivamos com faladores tolos, que não perdem uma oportunidade para não escutar e, o pior, impedir que o outro fale.

Sendo assim, escutatória é silenciar? Sabemos que não! Temos ciência de que comunicar é uma característica do humano. Mas comunicar sem subversões; é primordial respeitar preceitos para que a comunicação não resulte em bate-boca. Escutar é o sinal que o falar do outro é tão importante quanto o nosso.

Pois dominar a escutatória é uma marca que poucos carregam. O domínio dessa competência auxilia não apenas no parar para escutar, mas desprende, num agir sem prejulgamentos, habilidades socioemocionais que influenciam nas mudanças comportamentais.

O surpreendente é que, para a maioria, ouvir é a grande dificuldade, por não conseguir desenvolver a habilidade de escutar. Muitos têm oratória para prender a atenção de multidões, emudecer vozes, mas não impetram o dialogar, por não governarem o calar e o falar. Nessa transição, originam tantos conflitos e desentendimentos que cerram portas e perdem a oportunidade de conquistar o outro pelo escutar e, assim, facilitar o conviver.

Quando escutamos, permitimos que o nosso olhar se dilate para distinguirmos os reveses que nos impedem de nos aproximar e compreender o outro.

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