Edição 131

Profissionalismo

FORMANDO PAIS

Nildo Lage

Antes de nos deixar levar pelo confronto formando pais, é fundamental conferirmos as falhas ao nosso redor, para que a justiça comece de casa. Assim, é imperativo retrocedermos o olhar para constatar como anda a nossa família, que é o maior espaço de socialização do humano, por ser o hábitat de sentimentos e valores culturais e religiosos. É dessa fonte denominada família que emanam os nutrientes que sustentam o indivíduo para subsistir pelo sinuoso caminho do crescimento humano, individual e profissional.

A atmosfera familiar é um eficaz modelador, afeiçoa não apenas gênios, mas configura personalidades para se adaptarem ao meio em que vivem, e tais ações fortalecem as bases, principalmente de princípios, para que as próximas famílias a serem formadas não prossigam parcelando conflitos.

Problemas sempre teremos, mas podemos suavizá-los, para fazer da trajetória viver um percurso sem tantos altos e baixos.

Qual família não tem conflitos? A sua? Se a resposta for verdadeira, sinto lhe dizer que sua família é uma sociedade de robôs programados para não errar!

Se ninguém se esquiva, é hora de cada família buscar um ponto de equilíbrio e aprender a encarar as situações do dia a dia para superar conflitos familiares sem abrir novas feridas. Pois sabemos que, com uma pitada de resignação e tolerância, é possível deixar aquela altercação no calor dos fatos para outro momento; adotar um hábito que poucos pais assumem: ouvir os filhos! Temos maturidade, porém não somos a razão! Ouvir de forma serena aproxima, auxilia na visualização de erros; para mim — pai — é simples, mas para a imaturidade — filho — pode ser alarmante.

Esses atos nos fazem compreender o problema dos nossos filhos, que se sentem respeitados. Quando respeitamos os olhares, a individualidade, protegemos um eu que, muitas vezes, só almeja uma mão que o ampare num momento de instabilidade ou um abraço para se refugiar dos monstros que o perseguem.

Para formar pais que possam conduzir os seus filhos pelo caminho do crescimento, por meio da inserção de valores e limites, é preciso norte para encontrar alternativas que sanem problemas não somente familiares, mas no ambiente escolar.

Não podemos resistir nem nos enveredar por atalhos para nos esquivar de uma crise que se agrava a cada dia por receio de encarar nossas crias e abordar um assunto que se tornou o maior desafio para o sistema de ensino: a deformação dos valores da família, que capacitam a primeira base do indivíduo: os pais.

Somos conscientes de que a cooperativa escola recepta os produtos oriundos dessa sociedade desfigurada cognominada família e está — para cumprir as obrigações do Estado — de portas abertas para receber, e não para acolher. Porque escola não é hospedaria. Pública ou privada, é um ambiente de instrução coletiva. Mesmo tendo objetivos específicos, como desenvolver competências para formar o individual, respeita aspectos sociais, cognitivos e culturais, mas não possui fontes que exalem valores para repor a deficiência não suprida pela família.

O interessante é que pais e responsáveis têm ciência disso! Ainda assim, despacham suas crias num repasse automático de responsabilidade e delegam aos professores as tarefas de dar um jeito naqueles que — para a família — não têm mais conserto e, dessa forma, encontrar respostas para as perguntas: qual é a receita para educar filhos ante o desequilíbrio social, familiar, religioso e até de gênero? Há uma fórmula para cada gênio, transtorno, personalidade e natureza? Se não somos iguais, por que educar igual, nivelando todos para se acomodarem no mesmo protótipo?

A resposta é o que nos incita a desafiar o novo. Portanto, vamos permitir que esse impulso nos possibilite volver à roleta da vida à procura de um retorno que professores e especialistas martelam insistentemente sem que os progenitores aceitem: antes de aperfeiçoar a cria, é preciso formar os responsáveis.

Se os pais não forem formados para granjear competências para edificar os filhos, a tendência é de a situação se agravar! Se os responsáveis não forem transformados pela formação, pouco ou quase nada se altera no espaço escolar.

Assim como os pais, os professores — mesmo sendo pais — não foram preparados e confrontam com a resistência de um sistema que crê dominar competências para dilatar as veias de escape para desfazer os problemas dos formadores — menos alternativas para sobrepujar os próprios conflitos.

O assunto, de tão debatido, tornou-se corriqueiro, a ponto de sistema e governo adotarem ações automáticas, salientando na tabuleta a tabela que apresenta inúmeras alternativas: não grite, não agrida, converse para que o pequeno aprenda a importância de ouvir, de se expressar… Como não poderia faltar, o ingrediente mais importante no processo de crescimento do humano é amor!

Todavia, a semente do amor, por ser uma espécie delicada, ao ser plantada num terreno árido, requer cuidados especiais, e, como a maioria a desconhece, a cada dia fica mais ameaçada de extinção.

Até os desintegrados da realidade social, familiar e escolar têm ciência de que ninguém alcança ascensão sem uma estrutura. É preciso direcionamento para contornar obstáculos, força para sobrepujar desafios e visão de mundo para auxiliar na superação das dificuldades.

Sem consultar os universitários, senhores pais: como ser inserido num processo de formação sem tropicar ou empreender erros e fracassos? Quem é que não suborna para se esquivar; procrastina para ganhar tempo; e até adverte e sabota para dominar territórios e impor limites a uma geração que não precisa sair de casa para ser deseducada? Os influenciadores digitais — televisão, jogos de celular e internet — são janelas escancaradas pelos próprios pais, que, para terem instantes de paz para aquele cochilo, permitem aos filhos, ainda bebês, contemplarem, em imagens tridimensionais, os ingredientes da receita para serem agressivos e desobedientes.

E que os rebeldes não venham apontar escola, sistema, veículos digitais! Pais são haste! Podem se esquivar, camuflar-se, mas a seta dos problemas sociais gira e aponta para a fonte: a deficiência de formação dos pais implica no fracasso escolar dos filhos.

Formar pais é dilatar o olhar do humano maior para que possa compreender que educar é um procedimento imprescindível no processo de criação para promover o desenvolvimento do humano menor, que, mesmo ante tantas influências externas e a inconstância promovida pela imaturidade, busca nos pais referências para se auto-orientar.

Pais deformados pelos próprios pais?

Antes que o eco retroceda sem respostas, uma pergunta não pode ser refreada, e esta, de tão imprescindível aos pais de agora, decreta retorno imediato: que tipo de indivíduos queremos inserir na sociedade?

Não adianta recuar! O contragolpe é automático! Suas consequências repercutem em todos os caminhos em que o indivíduo transita, porque o seu agir reflete a criação, cujos ecos retinem em toda a trajetória do humano.

Permaneceremos acossados no próprio território? Quando transitamos em becos sem saídas, tudo que nos resta é questionar: por onde principiar o processo de formação dos pais? Com agressões? Gritos? Com amor e limites para que aprendam a formar as suas crias com regras e limitações?

Parem onde estão, seu joão das contas e dona maria vai com as outras! Essa conversa de que os tempos mudaram é apologia para escapar dos encargos! Os tempos mudaram, sim, como efeito da própria evolução do mundo, mas o humano permitiu ser esvaziado para ser “moderno” e não sobrar na parada! Se querem ser modernos, que sejam! Mas cumpram o seu papel de pais! Não há desculpas! Por mais que o ambiente familiar seja instável, todos sabemos o caminho.

Não é ficção, é real! E o reflexo dessa realidade se torna pior na sala de aula! Crianças e adolescentes perdidos num universo que não atrai, pois as ferramentas da educação não seduzem a geração que foi hibridada pela revolução tecnológica para não se desconectar do novo e que permitiu que a própria essência se tornasse energia para saciar esse novo que não admite ser ultrapassado.

O que está faltando? Responsabilidade para assumir compromissos com aqueles que, planejados ou não, não pediram para estar neste mundo. Portanto, não vamos sabotar uma realidade e empurrar o problema para as próximas gerações.

Como formar pais que não tiveram alicerce para construir uma família?

Se questionamentos ressoam ensurdecedores aos seus ouvidos, não corra em busca de respostas! Respire e estaque na porta de uma creche — referi creche porque é um espaço que recebe os bebês da geração sem: sem limites, sem respeito, sem educação, sem valores familiares… — para contemplar pais assentarem a mão na cabeça e gritarem: “O que fizemos?”.

Muitos não percebem, mas o eco do próprio brado ressoa como resposta! Nada! Não fizeram nada! Por que querem tudo? Coitados! Ninguém os avisou que seria assim! A verdade? As referências familiares e os princípios bíblicos, sociais e culturais que fortalecem a base do indivíduo para inverter o curso que leva ao despenhadeiro não foram difundidos.

Quem pode fazer alguma coisa para resgatar essas vidas do abismo? Escola? Família? Sistema? Ou o submundo social que nutre a violência?

Como a minoria ousa encarar o horizonte, poucos percebem que a família pós-boom tecnológico apresenta um novo formato. A avalanche tecnológica que comprimiu valores familiares, sociais e religiosos não deixou espaço para se contornar, impedindo um recomeço.

Quem viveu a experiência de gerar, parir e alimentar sabe que criar filhos não é uma tarefa fácil. Se as armadilhas sociais não ceifarem no meio do caminho, crescem, provando que o tempo passa para quem vive em abundância ou com dificuldades e privações. Assim como cresce o filho do abastado, também cresce o filho do que rala de sol a sol e até mesmo o do que mendiga o pão de cada dia. O que não se altera é o desequilíbrio familiar, que transita em todos os níveis sociais, e o mais magnífico: a vida se adapta às mutações de cenário para resistir às intempéries da própria sorte e segue adiante.

Os que se despontam como vencedores salientam que educar com valores ainda é a rota que conduz à vitória. Contudo, formar filhos para arquitetar o ser humano da época vindoura constitui o mesmo cuidado que formar um jardim. A experiência do jardineiro no preparo do solo e, até mesmo, o zelo na escolha da espécie para cada ambiente podem ser a diferença entre sucesso e fracasso.

Como não há fórmula assertiva, tampouco segura, que afiance a inexistência de desacertos, altos e baixos no processo de crescimento humano sempre incidirão. Quem não tem conflitos psicológicos, emocionais? Problemas financeiros? Quem não erra? Mas ter responsabilidade com aqueles que assentamos no mundo, sim! Se temos como evitar, porque criar os filhos como se fossem pedras de tropeço?

Formar pais é fortalecer o alicerce da sociedade: a família

O raio-x da Covid-19 evidenciou sequelas psicológicas e emocionais provocadas pelas perdas humanas e exibiu a desestrutura familiar para enfrentar tempos difíceis. A remoção do véu salientou famílias — independentemente de escolaridade ou nível social — sem o mínimo de fundamento para conviver no isolamento. A entrega foi tamanha que, para muitas, foi o juízo final.

Mortes em cascata e enclausuramento acenderam pânico. Como toda tragédia não anunciada, as famílias não souberam como agir. Só que família vive tempos difíceis mesmo sem pandemia ou crise financeira. Essa realidade é um alerta para o qual devemos recuar o olhar e estacionar no outro que é parte da nossa existência, para que sejamos um diferencial na sociedade.

A cadência de deterioração de valores não se interrompe. De tão corrosivo, falar de família, muitas vezes, incomoda. A desconexão, que desintegrou o que antes implicava em indivíduos interdependentes, converteu a família em um apinhado de membros cuja ligação é a consanguinidade. O canal que transitava sentimentos e emoções se desgastou pelo excesso de uso das ferramentas da modernidade, que assinalou novos ideais, objetivos e formas.

O interessante é que, independentemente da quantidade de indivíduos, o ambiente familiar influencia em tudo: na formação do caráter e da personalidade e, até mesmo, no agir e reagir. Pois emoção, segurança, conduta e convivência com o outro refletem no ambiente em que vivemos. Por que não proteger esse território tão precioso?

Como pais, como educadores, o que aspiramos para os nossos alunos? Sabemos que formar pais em meio às turbulências familiares é desafio sem precedentes. Muitos nem sequer têm noção sobre apartar educação de criação. Educação é enviar o filho para a escola? Criação é alimentar o físico? Quem assume o compromisso de inserir valores e desenvolver o intelectual?

Vamos pousar! Se ambicionamos cidadãos íntegros, temos que trabalhar a formação agora, pois algo tem que ser feito pela família do outro que está na nossa sala de aula hoje, para o próprio bem-estar da nossa família.

Como pais, como educadores que somos, quem ousa levantar o dedo e declarar: “Tenho diálogo com meus filhos e os auxilio nas dificuldades dos trabalhos escolares!”? Se se encaixa nessa realidade, não se exalte, para não ser humilhado! Isso é o mínimo! Porque muitos dos que estão na igreja pregando as boas-novas não praticam as lições que são caminho e vida, como: “Discipline seu filho, pois nisso há esperança; não queira a morte dele” (Provérbios 19.18) ou “Discipline seu filho, e este lhe dará paz; trará grande prazer à sua alma” (Provérbios 29.17).

A desconexão granjeia proporção de pandemia, porque muitos formadores não praticam o que ensinam: “Instrua a criança segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o passar dos anos não se desviará deles” (Provérbios 22.6).

Como é possível ensinar princípios e não os praticar? Pais só se tornarão eficientes educadores a partir de ações em família, pois exemplos de respeito, amor e integridade são processos educativos eficazes.

Essa influência é tão intensa que o comportamento do indivíduo em sala de aula ou no relacionamento com professores, funcionários e colegas reflete a educação familiar. Pais formados para serem educadores desempenham com maestria a função de mediadores do filho na superação dos desafios do mundo.

Como pais, não precisamos ser, necessariamente, heróis ou ídolos dos nossos filhos. Basta admitirmos que os erros fazem parte do processo de crescer, mas ponderar é tão sublime numa relação, excepcionalmente entre pais e filhos, quanto o ato mais sublime: o perdão.

Só que a desordem chegou a um nível tão altivo que formar pais tem que ser uma operação de emergência, para que genitores possam salvar a própria família de uma desestrutura cujas ações, entremeadas de suscetibilidades e agressões, promovem a disfunção familiar.

Muitos bem que tentam, mas são suplantados pelas turbulências do dia a dia, e o aniquilamento é inevitável. Porque a má conduta daqueles que deveriam ser exemplo transcende a própria razão e se abeira do descomedimento, assolando valores familiares que deveriam permanecer afixados ao amor e respeito, para agenciar o deleite dos que amam e, assim, promover o incremento biopsicossocial por meio da maturidade.

Muitos não resistem aos tremores e são fragmentados pelos sequentes conflitos. Ante o cenário assolador, sem paz que proporcione um ambiente acolhedor, é difícil ostentar, porque o amor foi alvejado pela desunião, e pais despacham, para a escola, filhos com o mínimo de equilíbrio. Pois o ambiente tenso, sem experiências afetuosas, promove a sobrecarga familiar, e esse estresse emocional afeta a saúde mental de indivíduos que atuam no espaço escolar com as mesmas atitudes que vivenciam dos pais.

A fragilidade familiar arremessa seus membros para a fronteira do fim, e as consequências das brigas diárias emergem no ambiente escolar. Por ignorarem o que é limite, respeito, os estudantes partem para a ofensiva, impelidos pela inexistência afetiva, por acreditarem que a sala de aula é extensão da sua casa, e fazem o que a vontade descomedida determina; assim, atacam, ferem e até matam.

Os números não mentem! Não há mais regras! Famílias se formam porque dois decidem se unir até que a crise os separe, para, no instante seguinte, recomeçar de novo! Sem compromisso, projetos ou afinidade, ajuntam, entregam-se às delícias, reproduzem e contemporizam as suas crias aos cuidados de outros ou as arremetem à própria sorte.

Como não há acordo, a formação dos filhos fica à mercê da escola, que assume — como pode — a responsabilidade de oferecer a educação formal com o auxílio de professores que se tornam, para muitos, referência familiar, porque é impossível não se tornarem corresponsáveis em formar afetiva, social e cognitivamente a personalidade daqueles que foram arremessados em seu colo.

No fim do ano, professores percebem que o que angariaram de amor, carinho, respeito e companheirismo da sua família compartilharam com aqueles que chegaram desprovidos de tudo.

Os abalos comoveram os alicerces da família com tamanha força que a desestrutura promoveu o acréscimo da violência, com familicídio, matricídio, parricídio, feminicídio… Sem contar o aumento do consumo de drogas, a desesperança, a baixa autoestima, a gravidez precoce. Os que ainda passam pelos portões da escola não conseguem alcançar rendimentos que os possibilitem prosseguir para o próximo ciclo. Por quê? Desconfiança nos próprios valores perdidos pelos pais através das gerações. E tudo o que se vê são infâncias perdidas, adolescências fracassadas e juventudes interrompidas!

E a escola, forçada a receber esses frutos como cliente exclusivo, tem que se posicionar como acolhedora para harmonizar a convivência e, assim, agenciar a estabilização emocional, mental, física e até espiritual, que não foi fornecida pela família, que dissolveu os pilares da vida para assumir o conviver. E, como toda sociedade que entra em colapso, caminhos se bifurcam como rotas de fuga. Com a magnitude dos sismos, foi inevitável a ruptura familiar.

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