Edição 127

Professor Construir

Gordofobia: a dor do peso na alma

Rosangela Nieto de Albuquerque

Vivemos num tempo histórico e social em que o padrão estético se tornou referência. Certamente, isso não é novidade na nossa história, os padrões de cada época são criados para gerar o distanciamento da elite do povo e provocar insatisfação na população, promovendo, assim, investimento de energia, dinheiro e tempo.

127-professor-construirSegundo Hall (1992/2002), no período do final do século XX e início do século XXI, vivenciamos uma “crise de identidade” do indivíduo promovida por uma mudança estrutural na sociedade moderna que deu origem a rupturas nos modelos culturais de classe, raça, etnia, sexualidade e até de nacionalidade, que anteriormente nos oportunizavam “[…] sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados” (HALL, 1992/2002, p. 9). Desse modo, essas transformações acarretam uma “descentração” do sujeito, originando uma perda de um sentido em si, no que tange ao seu lugar no mundo social e cultural.

Quando remetemos ao sentido em si, pensamos no sujeito corpo, e a construção dos sentidos e significados atribuídos ao corpo é elaborada conforme o tempo histórico e social. Na sociedade contemporânea, o sentido não se assemelha a nenhuma outra época; o corpo magro adquiriu um sentido de corpo ideal e nunca esteve tão em evidência como nos dias atuais.

A construção do sujeito e de sua identidade é uma construção discursiva e ideológica, segundo Rocha-Coutinho (1995, p. 51), em que os vários setores sociais — por exemplo, a mídia — trabalham para forjar o sujeito desejado. Assim, “[…] os discursos sociais constroem, refletem e, ao mesmo tempo, servem de suporte para os valores culturais dominantes em um tempo e grupo social determinados”. Nesse contexto, a construção da subjetividade na sociedade contemporânea apresenta o predomínio de uma ideologia individualista, voltada para o indivíduo com o seu valor supremo e fundamentada pela cultura do narcisismo — o desejo de onipotência em busca do sucesso individual. Esse projeto do “eu” moderno pautado para dentro e para cuidar de si promove uma cultura de um sujeito descuidado com as diferenças.

127-professor-construir-1Para Guattari (1990), pelas rápidas transformações técnico-científicas e pelos avanços dos meios de comunicação, evidenciou-se um esfacelamento de subjetividades ancorado nas formas de produção da vida moderna. Esses comportamentos engendram no cotidiano formas cada vez mais expropriadas de si — o modelo magro como forma de beleza — através do ritmo frenético imposto pelo capitalismo mundializado.

O corpo magro se transformou em um sonho de consumo para milhares de pessoas. Percebe-se que elas buscam, a qualquer preço, o corpo ideal, muitas vezes fazem dietas de todos os tipos (do sangue, da melancia, etc.), exercícios físicos intensos e até intervenções cirúrgicas (plásticas). Observa-se, portanto, que é preciso fazer exercícios não apenas por saúde, mas para manter o corpo desejado, para se conservar numa posição de validade, como uma forma de estar entre os desejados.

Estar magro, malhado, é uma forma de estar em uma posição privilegiada. Mas como alcançar esse status se a população só tem acesso aos alimentos pobres em nutrientes, ultraprocessados, que não sustentam? Como manter uma dieta saudável com o preço dos alimentos inacessível?

Estar magro é significado de beleza-padrão… A beleza é uma construção de controle social e tem se fortalecido: ‘Ela se fortaleceu para assumir a função de coerção social que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade já não conseguem impor’”
(WOLF, 2018, p. 27).

Pensar em corpo na atualidade nos remete à estética corporal, contudo é preciso entender que o nosso sistema precisa do discurso de referência para continuar a girar… Um pequeno grupo de pessoas com maior poder aquisitivo, que mantém o bom gosto e o saber, é que determina o que é arte, pautado no objetivo de que ela fique ainda mais inalcançável ao povo comum. Assim, utiliza-se do difícil discurso de padrões.

Segundo Nahoum-Grappe (1991), para se compreender como as atitudes e os simbolismos em relação ao corpo foram construídos, é fundamental um percurso histórico. Nos países ocidentais desenvolvidos, há um século, os gordos eram amados; hoje, nos mesmos países, amam-se os magros e odeiam-se os gordos. Sim, certamente, com o passar do tempo, as percepções foram se modificando, e hoje observa-se que existe um pavor social em engordar.

Esse pavor e esse ódio são uma discriminação que leva à exclusão social e constrói uma estigmatização estrutural e cultural. Graças aos movimentos antigordofóbicos, essas oposições têm tido menos espaço para se propagar.

O corpo fora do padrão remete a alguém de identidade frágil e moralmente inferior, e esta parece ser a tradução dos olhares sobre corpos gordos: corpos que precisam ser mudados para poder existir.

127-professor-construir-2Certamente, o corpo, por excelência, natureza e cultura, transita pela dualidade: um corpo que nos é dado e um corpo que nos é exigido pela instância social das épocas e das culturas. O sentido de existir se pauta num corpo; assim, constrói-se a identidade e a relação de pertencimento através desse corpo que nos é dado. Mas, quando o corpo representa “o gordinho”, fora dos padrões sociais, constitui-se uma identidade-corpo fragilizada, que precisa ser mudada, e, se as pessoas gordas emagrecem, são chamadas de vitoriosas. Criou-se a ideia de que, na academia, as pessoas não desenvolvem só os músculos, como também seu caráter.

O corpo fala, ele grita seus medos, suas angústias e o seu abandono, grita o quanto o peso dói na alma…

O corpo se tornou o lugar da identidade pessoal. Sentir vergonha do próprio corpo seria sentir vergonha de si mesmo. […] mais do que as identidades sociais, mais caras ou personagens adotadas, mais até do que as ideias e convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa. Portanto, já não existe mais vida privada que não suponha o corpo (PROST, 1987, p. 105).

Ser gordo na atualidade é um “peso na alma”, é ser objeto de discriminação, humilhação, desvalorização, inferiorização e exclusão de modo geral. Sabemos que os discursos diários reforçam o preconceito/estigma em relação às pessoas gordas, fortalecendo os estereótipos que estabelecem situações constrangedoras, degradantes e de exclusão social. Para Foucault (1997, p. 127), “[…] o certo é que as redes do poder passam hoje pela saúde e pelo corpo. Antes, passavam pela alma; agora, pelo corpo”.

Pode-se entender, então, que o corpo é revestido de símbolos, interpretações, julgamentos e expectativas, de modo que “[…] se aplicam sentimentos, discursos e práticas que estão na base da vida social” (BOLTANSKI, 1994, p. 101).

A gordofobia está em todos os lugares; acontece na família, no trabalho, na escola, nas mídias, nas redes sociais, no lazer, nas praias, nas piscinas, nos hospitais e consultórios, na balada, no transporte, nas academias, nos espaços públicos e privados e, às vezes, apresenta-se disfarçada de preocupação com a saúde, mascarada pelos discursos de poder, geradores de exclusão.

Nos diversos espaços sociais, a luta contra a gordofobia é grande, e, numa sociedade altamente excludente e preconceituosa, entende-se a necessidade da criação de leis, estas já elaboradas pelos poderes municipais e estaduais do Estado de Pernambuco. O importante é que as escolas trabalhem desde cedo o respeito às diferenças, ao sujeito enquanto corpo em um ser em si.

As leis são elaboradas para punir quando a sociedade não respeita o indivíduo e as formas de civilidade; no entanto, o ideal é conscientizar de que o padrão de beleza instituído — “o magro é belo” — não deve ser aceito e propagado, pois não considera o eu sujeito, só representa uma imagem socialmente construída. Assim, a gordofobia não é uma atitude respeitosa, humana, e causa dor, exclusão, constrangimento, um peso na alma…

As escolas, através das práticas educativas, precisam trabalhar a atitude de respeito a todos, às diferenças, aniquilar os preconceitos e esclarecer que a gordofobia deve ser combatida/excluída. No Estado de Pernambuco, temos leis estaduais e municipais que orientam e promovem a importância do trabalho nas escolas:

A Lei nº 18.831/2021 institui no Recife o Dia Municipal de Luta contra a Gordofobia, que passará a integrar o Calendário Oficial de Eventos do Município. O dia escolhido foi 10 de setembro, data já conhecida, informalmente, como Dia do Gordo.

A Lei nº 18.832/2021, por sua vez, assegura às pessoas gordas carteiras escolares adequadas ao seu biotipo corporal nas instituições de ensinos Básico e Superior do Recife, seja de instituições públicas, seja de privadas, além de garantir o ensino livre de discriminação ou práticas gordofóbicas.

Lei municipal https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/08/09/2022/secretaria-da-mulher-do-recife-promove-exposicao-para-marcar-o-dia-municipal-de#:~:text=Sancionadas%20em%20setembro%20de%202021,informalmente%2C%20como%20Dia%20do%20Gordo.

É importante enfatizar que duas leis estaduais foram instituídas:

A Lei nº 17.099, de 29 de outubro de 2020, altera a Lei nº 16.241, de 14 de dezembro de 2017, que cria o Calendário Oficial de Eventos e Datas Comemorativas do Estado de Pernambuco, define, fixa critérios e consolida as leis que instituíram eventos e datas comemorativas estaduais, de autoria do deputado Diogo Moraes, a fim de incluir o Dia Estadual de Enfrentamento à Gordofobia. […] Art. 1º – A Lei nº 16.241, de 14 de dezembro de 2017, passa a vigorar com o seguinte acréscimo: “Art. 260-A. Dia 10 de setembro: Dia Estadual de Enfrentamento à Gordofobia”.

A Lei nº 17.781 foi sancionada em 10 de maio de 2022, sendo reconhecida como Lei Sâmia Véras, e altera a Lei nº 13.995, de 22 de dezembro de 2009 (Lei do Bullying). Publicado no DOE – PE em 11 maio 2022. A parlamentar propõe a adoção de medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate ao bullying escolar no projeto pedagógico elaborado pelas escolas públicas e privadas de Educação Básica do Estado de Pernambuco. O objetivo é acrescentar a importância da identificação e prevenção a práticas gordofóbicas nos estabelecimentos de ensino.

Art. 1º – A Lei nº 13.995, de 22 de dezembro de 2009, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 3º VIII – Conscientizar, especificamente, sobre os riscos da prática de gordofobia dentro das escolas, com a finalidade de promover a defesa da vida mediante o fortalecimento da autoestima e a solidificação de valores calcados na Dignidade da Pessoa Humana que sustentem o desenvolvimento psicossocial de alunos da Rede Estadual de Ensino”.

Portanto, ao se pensar na questão do corpo gordo, é necessário, primeiramente, entender o lugar do sujeito, marcado pela condição pós-moderna, para então entender como foi criada essa conotação pejorativa do ser gordo pela sociedade. Certamente, o ato de rejeição à pessoa gorda gera a gordofobia — um peso que dói na alma.

Considerações finais

A busca incessante para alcançar um corpo magro conduz à ideia de que a conquista do corpo ideal traz felicidade, como se através dele fosse possível encontrar sucesso na profissão, nos relacionamentos sociais e amorosos, e isso é reiterado pelos discursos de especialistas das mais diversas áreas.

A cultura contemporânea valoriza a magreza, legitimada pelo discurso da beleza e dos danos à saúde, promovendo, assim, sérias consequências para a subjetividade dos que não se adaptam a esse corpo ideal. Desse modo, muitos transitam por um corpo recusado, e isso torna-se um peso na alma do sujeito, um refluxo sobre si mesmo.


Rosangela Nieto de Albuquerque é ph.D. em Educação (Universidad Tres de Febrero), pós-doutoranda em Psicologia, Doutora em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, psicanalista clínica, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, Especialista em Neuropsicologia Clínica e Neuropsicopedagogia Clínica, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), autora de projetos em Educação e da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia Clínica como projeto social e autora e organizadora de treze livros nas áreas da Educação e da Psicologia.

BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994. 

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: vontade de saber (I). 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 
 
GUATTARI, F. As três ecologias. São Paulo: Papirus, 1990.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 7. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2002.

Lei Municipal da Cidade do Recife. Disponível em: https://www2.recife.pe.gov.br/noticias/08/09/2022/secretaria-da-mulher-do-recife-promove-exposicao-para-marcar-o-dia-municipal-de#:~:text=Sancionadas%20em%20setembro%20de%202021,informalmente%2C%20como%20Dia%20do%20Gordo. Acesso em: 01/09/22.

NAHOUM-GRAPPE, V. A mulher bela. In: DUBY, G. & PERROT, M. (Orgs.). História das mulheres no ocidente do renascimento à idade moderna (p. 121–140). Porto: Afrontamento, 1991.

PROST, A. Fronteiras e espaços do privado. In: PROST, A. & VINCENT, G. (Orgs.). História da vida privada: da 1ª guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. v. 5, p. 13–154.

ROCHA-COUTINHO, M. L. O mito nosso de cada dia: ser mulher nos anúncios de revistas femininas. Série Documental, 3 (6), 1995. 

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução: Waldéa Barcellos. 6. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

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