Edição 127

Matéria Âncora

Gordofobia: um mal do século XXI

Sâmia Véras

Numa sociedade preconceituosa, onde se busca cada dia mais o padrão de beleza imposto pelo mundo da moda e da mídia, que dita a beleza perfeita como aquela cujo corpo é magro e tem cabelos lisos, olhos claros e pele branca, as pessoas perdem a certeza da valorização do ser. A apropriação da regra imposta, trazendo para si e para o outro uma concepção de beleza, propaga uma aversão do que realmente venha a ser padrão de beleza.

Padrão de beleza, em sua essência, não diz respeito ao que os outros planejam e criam sobre seu corpo, sobre sua aparência ou sobre seu jeito de ser e viver. Padrão de beleza, seja na infância, seja na vida adulta, é essencialmente aquele que cabe em cada corpo, em seus princípios, em suas características físicas.

127-materia-ancora-1A gordofobia se instaurou no meio do povo silenciosamente, manifestando-se fortemente no passar do tempo; dentro das escolas, passa despercebida pela comunidade escolar.

De acordo com o Ministério da Saúde, no “Brasil, mais da metade da população, 55,7%, tem excesso de peso. Um aumento de 30,8% quando comparado com o percentual de 42,6% no ano de 2006. A prevalência foi maior entre as faixas etárias de 18 a 24 anos, com 55,7%. Quando verificado o sexo, os homens apresentam crescimento de 21,7%; e as mulheres, de 40%” (https://www.saude.gov.br, 25 de jul. de 2019).

Apesar de ser uma característica como outra qualquer, ser gordo hoje para a sociedade é um ­traço físico atribuído a pessoas “doentes” (nem todo gordo é doente, nem todo magro está saudável). É dito que são feias na aparência, menos inteligente que as demais, malcheirosas, desleixadas, gulosas, enfim, sem perspectiva de vida.

No caos gordofóbico, as mulheres, em seu dia a dia, procuram, de maneira desesperadora, fugir para não se tornar alvo do preconceito. Até mesmo as que já foram ou são vítimas do preconceito procuram se enquadrar no modelito do padrão imposto; e, para que isso aconteça e evite danos à sua autoestima e aos seus anseios próprios, submetem-se a dietas mirabolantes, milagrosas, com efeitos irreais do ponto de vista nutricional, causando ainda mais desestímulo emocional e desencadeando outros tipos de doença, pois essas dietas não funcionam, e as frustrações são dobradas.

Foucault (2000) afirma:

Pensamos que o corpo tem apenas as leis de sua fisiologia e que ele escapa à história. Novo erro: ele é formado por uma série de regimes que o constroem; ele é destroçado por ritmos de trabalho, repouso e festa; ele é intoxicado por venenos, alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais, simultaneamente; ele cria resistências.

127-materia-ancora-2Diante do exposto, a maioria das pessoas prefere viver um paradigma imposto do que vivenciar seu próprio paradigma. Mesmo assim, no dia em que o ser se apropriar dos seus valores, de suas características físicas, valorizando seu corpo e suas peculiaridades, estará entrando em uma nova camada em que o que impera é o seu padrão próprio de beleza. Caso precise mudar, que seja por decisão própria, com profissionais capacitados para contribuir com a mudança de maneira correta, sensata, em que o bem-estar e a saúde prevaleçam.

A gordofobia é uma prática presente nos diversos grupos sociais, e, por isso, faz-se necessário um exercício de cidadania em que imperem a conscientização e o respeito ao outro. O Estado precisa intervir no sentido de propor políticas públicas que coíbam a agressão e punam o agressor por meio da criação e implantação de leis que beneficiem a vítima de violência.

Os efeitos dos movimentos e projetos de ativismo da causa plus size, como o projeto de empoderamento feminino As Mil Faces de uma Plus, em Pernambuco, evidenciam claramente seus anseios, as práticas de combate ao preconceito, o despertar para uma sociedade mais justa e igualitária.

Na maioria das escolas, a gordofobia é tratada como bullying, e não existe um olhar diferenciado propriamente dito para com o preconceito.

A escola é palco do bullying e da gordofobia, principalmente na periferia, onde o educando convive constantemente com o preconceito e a agressão. Faz-se necessário um trabalho constante no âmbito escolar abordando, combatendo e conscientizando seus docentes, de maneira que trabalhem as duas questões em pauta de forma precisa e constante. Afinal, combater e conscientizar são processos lentos, de muita determinação e compromisso com os envolvidos na causa em questão.127-materia-ancora-3

Daí surgem os desafios e, com eles, muitas vezes, o sentimento de impotência, pois, diante de uma grande muralha, ao ser é inerente o medo e a sensação de não conseguir ser capaz de solucionar a situação vivida e transpor o preconceito. Por isso, são importantes a vontade de mudança, a determinação, o engajamento e, em especial, o comprometimento da escola com a educação e com seus alunos.

Sabemos que não se consegue a mudança num piscar de olhos. Para tudo, há um tempo de amadurecimento para que exista progresso e para que se alcance a maturidade dos docentes quanto aos projetos desenvolvidos.

Os discentes, a gestão escolar, os coordenadores e toda a equipe pedagógica precisam executar projetos voltados para essas temáticas e contar também com a ajuda de profissionais das áreas de Psicologia e Nutrição.

Sabemos que os desafios são inúmeros, e uma parcela deles parte da falta de educação doméstica. Outro desafio é se conscientizar de que o aluno está agindo de maneira incorreta, porque dentro de casa a vivência é oposta ao que ele aprende na escola com docentes despreparados. É preciso estratégia para falar da obesidade como uma característica como outra qualquer, sem gerar polêmica e constranger quem está acima do peso em sala de aula.

O projeto As Mil Faces de uma Plus surgiu, em junho de 2017, da necessidade de propor às mulheres uma autolibertação daquilo que as aprisiona, como a depressão, a opressão doméstica e a ideia de que a mulher bela tem que ser necessariamente magra. O projeto tem como objetivo mostrar a importância da autoestima e da valorização, o combate à gordofobia e à ditadura dos padrões impostos pela sociedade.

É um projeto estruturado para um público-alvo adulto. Posteriormente, surgiu a execução nos anos iniciais, na qual se prioriza toda a estrutura da criança em seu desenvolvimento socioafetivo, seu caráter, sua maturidade e suas habilidades emocionais, dando ênfase à política do respeito às diferenças e à prática do amor ao próximo desde a infância.

127-materia-ancora-4Daí a necessidade de um projeto interdisciplinar bem elaborado, pensado, criado e estruturado com foco no preconceito, com os docentes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, por serem a base estrutural do processo educacional onde o projeto será executado, contendo roda de conversa; contação de história (com um texto criado com base no público-alvo e voltado para o termo abordado); e atividades de artes trabalhando as diferenças, as características físicas e o respeito pelas diferenças.

Esse projeto precisa ser pensado e executado com ludicidade, sendo envolvente, divertido, diferente e que cumpra seus objetivos.

É imprescindível a discussão do assunto nas escolas com os pais e mestres, e se faz necessário também inserir, no projeto político-pedagógico (PPP) de toda escola, a temática gordofobia, criando projetos de ações para conscientizar, prevenir e combater o preconceito nas escolas e, consequentemente, na sociedade.

Nesse contexto, surge a necessidade de políticas públicas municipais e estaduais que direcionem a sociedade ao combate e enfrentamento ao preconceito contra a pessoa gorda.

Hoje, temos duas leis municipais sobre o tema na cidade do Recife, sendo elas:

• A Lei nº 18.831/2021, que institui o Dia Municipal de Luta contra a Gordofobia, que passará a integrar o Calendário Oficial de Eventos do Município. O dia escolhido foi 10 de setembro, data já conhecida, informalmente, como Dia do Gordo.

• A Lei nº 18.832/2021, que, por sua vez, assegura, às pessoas gordas, carteiras escolares adequadas nas instituições de Ensino Básico e Superior do Recife, seja de instituições públicas, seja de instituições privadas, além de garantir o ensino livre de discriminação ou práticas gordofóbicas.

Há também duas leis estaduais:

• A Lei nº 17.099, de 29 de outubro de 2020, que altera a Lei nº 16.241, de 14 de dezembro de 2017, que cria o Calendário Oficial de Eventos e Datas Comemorativas do Estado de Pernambuco, define, fixa critérios e consolida as leis que instituíram Eventos e Datas Comemorativas Estaduais, de autoria do Deputado Diogo Moraes, a fim de incluir o Dia Estadual de Enfrentamento à Gordofobia.

“Art. 1º – A Lei nº 16.241, de 14 de dezembro de 2017, passa a vigorar com o seguinte acréscimo:
Art. 260-A. Dia 10 de setembro: Dia Estadual de Enfrentamento à Gordofobia (AC).”

• A Lei nº 17.781, que foi sancionada em 10 de maio de 2022, sendo reconhecida como Lei Sâmia Véras, e altera a Lei nº 13.995, de 22 de dezembro de 2009 (Lei do Bullying).

“Art. 1º – A Lei nº 13.995, de 22 de dezembro de 2009, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 3º
VIII – conscientizar, especificamente, dos riscos da prática de gordofobia dentro das escolas, com a finalidade de promover a defesa da vida mediante o fortalecimento da autoestima e a solidificação de valores calcados na Dignidade da Pessoa Humana, que sustentem o desenvolvimento psicossocial de alunos da Rede Estadual de Ensino (AC).”

A iniciativa surgiu a partir de movimentos da sociedade civil que buscam empoderar pessoas gordas e obesas. O novo PL atualizou a lei anterior existente, no tema do bullying, e passou a se chamar Lei Sâmia Véras, reconhecendo o protagonismo da pedagoga pernambucana que criou e desenvolve agendas afirmativas de ações interventivas através da articulação do projeto As Mil Faces de uma Plus, percebendo que, principalmente, as mulheres vítimas da gordofobia podem passar pela exclusão social e estigmatização, desencadeando fobias sociais, bulimia, anorexia, baixa autoestima e até suicídio.

127-materia-ancora-5Considerações Finais

Com as leis estaduais e municipais, as instituições escolares passarão a ter o compromisso de criar e elaborar políticas públicas internas, partindo do regimento do projeto político-pedagógico (PPP) em cada unidade escolar, seja ela pública, seja privada, envolvendo especificamente a problemática da gordofobia no âmbito escolar.

O papel da escola é conscientizar quanto ao respeito às diferenças, contribuir para uma vida saudável e incentivar a prática esportiva lúdica em todas as idades.

A escola precisa trazer um diferencial que estimule a vontade própria da criança e do adolescente a praticar esporte ou atividades que proporcionem perda de peso para tratar a questão da obesidade.


Sâmia Araujo Véras é professora, pedagoga, autora de cinco livros de Literatura Infantil, editados pela Editora Prazer de Ler, militante e referência da causa plus size em Pernambuco e autora do projeto de empoderamento feminino e inclusão social intitulado As Mil Faces de uma Plus. Recebeu o prêmio Mulheres que Mudaram a História de Pernambuco, em 2019, dos jornalistas Ramos Silva e Silene Floro; e o prêmio Jurema Mulher, da Revista Jurema/2019. Recebeu Voto de Aplauso da Assembleia Legislativa de Pernambuco, em 2019, “por seus serviços prestados à sociedade no enfrentamento e combate à gordofobia quanto à sua representatividade feminina e no engajamento de trabalhos voltados para a autoestima da mulher, a inclusão social e o respeito às diferenças”. Foi responsável pela Lei Sâmia Véras.

E-mail:  gdnia.samia@gmail.com

 

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 15. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

Ministério da Saúde. Disponível em: https://www.saude.gov.br › noticias.

cubos