Edição 124

Em discussão

Literacia e numeracia: a importância de estimular habilidades na pessoa com autismo

Fabiana Farah

literancia-numeranciaÉ possível dizer que as habilidades com a matemática surgem de modo muito mais intuitivo e natural que a leitura e a escrita, ou seja, a alfabetização. Essa é uma das diferenças entre a literacia e a numeracia. A numeracia permite que o ser humano solucione situações da vida cotidiana e saiba lidar com informações matemáticas, como, por exemplo, as habilidades de raciocínio lógico, as noções de grandeza e quantidade.

O indivíduo inicia a percepção dos padrões de tamanho (grande e pequeno), quantidade (muito e pouco), peso (leve e pesado) em sua rotina diária desde a primeira infância. Possui a capacidade de perceber diferentes formas ainda que não consiga nominá-las, uma vez que há certo lapso temporal para aprender as especificidades de cada uma. A vivência no ambiente escolar favorece a estimulação do desenvolvimento de muitas habilidades em diferentes espaços nos quais a pessoa possa estar inserida.

As pessoas com algum transtorno em que um dos comprometimentos é a deficiência intelectual podem demonstrar déficit (ou excesso) no raciocínio lógico matemático. Uma vez que elas partem do concreto (o que se pode ver, pegar, sentir, etc.) para o abstrato (noções de ideias, valores, conceitos, etc.), é possível que haja certa dificuldade (ou extrema facilidade) nessa mudança gradual. Eventualmente, isso pode prejudicar o saber lidar com quantidade e com dinheiro ou a solução de operações matemáticas. É o caso de alguns autistas que apresentam facilidade com números e dificuldade com letras.

É exatamente na Educação Infantil que a pessoa deve aprender algumas habilidades importantes para o seu desenvolvimento neuropsicomotor. É uma fase de aprendizagem significativa e estruturante que acontece a partir do outro, e é por meio de um mediador (no caso, o professor) que a pessoa enriquece seu vocabulário, reforça suas aptidões e procura vencer os obstáculos, desenvolvendo habilidades psicomotoras. O convívio escolar e o aprendizado na primeira infância é o alicerce para outras conquistas. O ato de brincar objetivamente, dando significado, é fundamental para desenvolver habilidades cognitivas.

Sabendo disso, é necessário observar e respeitar o tempo produtivo de resposta de cada um, principalmente daqueles que apresentam visível atraso cognitivo e neuropsicomotor, como algumas pessoas com o Transtorno do Espectro Autista que precisam de direcionamento específico e acompanhamento multidisciplinar¹.

O chamado letramento emergente (leitura e escrita para pessoas ainda não alfabetizadas) deve ser preferencialmente desenvolvido no ambiente escolar, já que as intervenções precoces são mais favoráveis. Todavia, há a literacia familiar (que é a participação ativa dos pais ou responsáveis na educação dos filhos), e incentivá-la é de grande importância para o aprendizado da leitura e da escrita em atividades da vida diária. Um exemplo simples seria a contação de história ou a leitura de um livro realizada em família. Para o autista, a literacia familiar é de extrema importância, uma vez que o transtorno apresenta, em alguns casos, comprometimentos consideráveis na comunicação social, cumulados a movimentos motores e verbais estereotipados, comportamentos repetitivos e interesses restritos, além de rotina e comportamento ritualizados e excessivos que podem ser minimizados com essa vivência da literacia2.

Segundo o médico Walter Schneider — cientista sênior do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Aprendizagem da Universidade de Pittsburgh, pesquisador sobre danos cerebrais —, nos primeiros anos de vida as crianças alcançam o estágio de emissão das palavras a partir da criação de ligações internas entre o sistema de fibras nervosas responsáveis pelo balbucio verbal e motor (contidos no cérebro), ou seja, há uma conexão no que a criança vê com o que ela diz, fazendo surgirem as primeiras palavras.

No caso do autista, por exemplo, essa conexão pode se apresentar com algum comprometimento; na maioria dos casos, as fibras não se direcionam especificamente para as áreas destinadas à produção de linguagem; assim, o cérebro produz novas fibras, que se conectam a outras áreas, fazendo com que uma fase evolua bem (o balbucio verbal entre 6 meses e 1 ano), mas a linguagem pode sofrer drástica diminuição no desenvolvimento entre 1 e 2 anos de idade, fase em que pode ser diagnosticado o autismo em algumas situações3.

A averiguação da intensidade de algumas características e comportamentos tem sido usada na classificação e amplitude das subdivisões do autismo, quando algumas pessoas apresentam “janelas de oportunidades” maiores que outras, ou seja, períodos detectados pela neurociência como mais satisfatórios para a aprendizagem4. Nesse caso, um período relevante que pode ser explorado seria a infância. Por isso, a necessidade de se reconhecer a importância da inclusão precoce dessas pessoas na escola, porque a estimulação devida deve ir além do ambiente clínico, e a socialização pode interferir de forma direta e positiva no desenvolvimento comportamental do autista5.

A literacia e a numeracia são, comprovadamente, de grande importância para o desenvolvimento e a evolução das habilidades das pessoas com autismo e satisfatórias para os professores e familiares que convivem com elas. Parafraseando a advogada e professora Tatiana Takeda6, especialista no assunto, “A inclusão é um caminho sem volta”.


 

fabiana-farahFabiana Barrocas Alves Farah é fisioterapeuta, advogada, Mestre em Direito Privado. Cearense natural de Fortaleza, é mãe de duas filhas, sendo uma delas diagnosticada aos 17 anos com TEA associado à síndrome de Pitt-Hopkins, uma patologia considerada rara. Desde o nascimento dessa filha, busca compreender melhor seus comprometimentos e direcionar seu tratamento. Após decidir pela graduação tardia em Direito, resolveu lutar contra o preconceito e a desinformação sobre o transtorno, divulgando e trabalhando em prol dessa causa.

E-mail: fabifarah@hotmail.com

1 NEUROSABER, Instituto. Saiba o que é numeracia e a sua importância na Educação Infantil. Disponível em: https://institutoneurosaber.com.br/saiba-o-que-e-numeracia-e-a-sua-importancia-na-educacao-infantil/. Acesso em: 08 mar. 2022.

2 BATTISTELLO, Viviane Cristina de Mattos. Perspectivas sobre o processo de leitura para crianças autistas: do letramento emergente à literacia familiar. Disponível em: https://www.anais.ueg.br/index.php/enfople/article/view/14193. Acesso em: 08 mar. 2022.

3 GRANDIN, Temple; PANEK, Richard. O cérebro autista: pensando através do espectro. Tradução: Cristina Cavalcanti. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 49–51.

4 PARANÁ, Tribunal de Justiça do Estado do. Transtorno do Espectro Autista: orientação técnica para terapias. Manual preparado ao Comitê de Saúde Suplementar. Maria Helena Jansen de Mello Keinert (Org.). Curitiba: [online], 2018.

5 FARAH, Fabiana Barrocas Alves. Autismo: os direitos – a realidade. Rio de Janeiro: Lumenjuris, 2021. p. 10.

6 Advogada; membro da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/GO; coordena a Subcomissão de Defesa dos Direitos das Pessoa com Autismo; vice-presidente da Comissão de Inclusão Social e Defesa da Pessoa com Deficiência do IBDFAM/ GO; professora do curso de Direito da PUC Goiás; assessora de conselheiro no TCE Goiás; Mestre em Direito; e autora do livro Autismo: os direitos – a realidade.

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