Edição 123
A fala do mestre
O bem comum e o professor quântico
Lécio Cordeiro
No artigo passado, ao retornar à meritocracia, tema da edição 121 da RCN, tocamos em um ponto fundamental para a Educação Básica: o bem comum. Olhando atentamente a BNCC, percebemos que o cuidado com o bem comum perpassa toda a formação dos alunos, sobretudo no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. É claro que ele está, também, na base da Educação Infantil, mas se apresenta de maneiras diferentes. Lá encontramos inúmeras referências à ética, à cidadania, à solidariedade — tudo permeando competências e habilidades que, de uma forma ou de outra, confluem para o bem coletivo. Mas alcançar esse prêmio não é tarefa simples, afinal vivemos em uma sociedade que, como vimos, valoriza e recompensa, em boa medida, os méritos individuais. Uma reflexão cuidadosa mostra que, para formarmos alunos preparados para cooperar no bem comum, precisamos pensar nossa prática docente de maneira quântica. O adjetivo pomposo vem da Física Moderna e empresta a esta conversa seu sentido essencial: nos limites das nossas possibilidades, precisamos analisar tudo o que está acontecendo à nossa volta.
Os livros didáticos, por exemplo, são parte do universo quântico da escola. Todos os livros hoje disponíveis no mercado são bons. Alguns são excelentes, mas todos são bons. Certeza. Se analisarmos bem, veremos que têm o básico de que precisamos para, pelo menos, conduzir as aulas de forma razoável. O ponto fundamental dessa questão e que não podemos esquecer é: livro didático é ferramenta, professor é artesão. Quem se limita a somente seguir o conteúdo proposto nos compêndios está apenas modelando o barro de forma descuidada. Os motivos que levam a essa mediocridade são subjetivos. Pode ser despreparo, cansaço, desmotivação, impaciência, etc. — ou tudo isso junto. Às vezes, o professor desiste de se aborrecer à toa com “o filho dos outros”. Nesse raciocínio, criticar os livros é desvio de finalidade, é como tentar esculpir uma pedra com um lápis e dizer que o lápis não é bom, pois não talha a pedra. Assim, é perfeitamente possível desenvolver um excelente trabalho sem livro. Do mesmo modo, é possível desenvolver um péssimo trabalho utilizando um excelente livro.
Meus amigos, nós sabemos que a docência é uma das atividades profissionais mais exigentes. Além de dominar o conteúdo, precisamos estar atentos a tudo, porque, tanto na sala de aula como na vida, tudo comunica — a postura, o corpo, o olhar, a respiração, os gestos, a voz. A postura quântica consiste em olhar o mundo sob perspectivas diferentes, entender que existem incalculáveis possibilidades. Isso significa trabalhar com os alunos permitindo que eles desenvolvam seu pleno potencial, sem crenças limitantes. O objetivo é buscar o máximo desse potencial, tendo como fundamentos a liberdade e a solidariedade. Em outras palavras, voltamos ao nosso ponto de partida: o bem comum. Não há nenhuma novidade nisso — é a essência do art. 2º da LDB, que tem quase 30 anos! A pergunta é: por que ainda não conseguimos alcançar plenamente esse objetivo?
Há muitas respostas para essa pergunta. O insucesso passa, necessariamente, pela desvalorização docente, pelos baixos salários, pelas cobranças abusivas, por novidades esdrúxulas, como o professor-horista — um contrato que não remunera o trabalho docente que ocorre fora de sala de aula, que é onde se dá a maior parte desse trabalho! Mas, em vez de chafurdar no pessimismo, prefiro convidar meus amigos a repensarmos nossa profissão diariamente em busca de melhores caminhos. Nesse raciocínio, proponho três passos essenciais para a Pedagogia Quântica.
O primeiro passo é ver, falar e escutar de maneira consciente. Observar tudo com o máximo de atenção, da postura dos alunos ao cumprimento dos documentos oficiais. Quanto mais amplitude tiver nossa atenção, mais bem-sucedida será, provavelmente, nossa prática. Digo provavelmente porque de nada adianta ficar de vigília e não fazer nada quando o ladrão se aproximar. No nosso contexto, o larápio tanto pode ser um erro na abordagem do conteúdo quanto uma avaliação malfeita, o descontrole emocional ou a estratégia marota de fingir que esqueceu a caderneta e parar a aula para ir buscá-la. Importante: a maioria desses ladrões não assalta nossa sala de aula esporadicamente. Eles vêm e vão o tempo inteiro, cabe a nós a tarefa diária de fechar-lhes a porta.
Segundo passo: é preciso acreditar em nós mesmos, no nosso próprio potencial. Por mais difícil que seja o desafio diário, em diferentes aspectos, é fundamental investir o máximo possível no nosso próprio desenvolvimento, afinal a capacitação contínua é indissociável da profissão. Sempre há novidades. Dado o estágio social e tecnológico em que nos encontramos, não existe mais a possibilidade de chegarmos a certo ponto da carreira e nos darmos ao luxo de descansar. No mundo líquido em que vivemos, não há dúvida de que o conhecimento é o nosso maior patrimônio, mas ele também flui. Por isso, nunca poderemos parar de estudar, nunca estaremos prontos completamente.
Terceiro passo: confiar no potencial dos alunos e cuidar para não deixar nenhum deles para trás. Felizmente, todos nós temos alunos que revelam sua potencialidade diariamente, ainda que sejam minoria. Estão preocupados com o futuro, o desemprego, a violência, a política. Normalmente, contam com apoio familiar relativamente estruturado, por isso não nos preocupam. O que não pode acontecer é dedicarmos nossa atenção exclusivamente para eles, pois estão saudáveis. São os doentes que precisam de médicos. No geral, a preocupação mais genuína da maioria é com o que cobraremos na prova. Eles não estão interessados ou preocupados em aprender. No máximo, quando se interessam, querem saber o porquê das coisas que nós ensinamos ou para que servem. Assim, o desafio é fazer com que nossa aula seja mais interessante que aquilo que eles encontram na Internet. A verdade é que não conseguiremos ensinar nada se não os inspirarmos a aprender. E aprender é o melhor caminho para ensinar.
Como se vê, o desafio quântico é hercúleo e está intimamente relacionado a uma transformação interior. Por mais romântica que pareça, essa ideia é verdadeira: a observação atenta e consciente é a chave para a Pedagogia Quântica dedicada ao bem comum. Lembro-me de Pestalozzi, no início do século XIX. Em um castelo medieval, na cidade suíça de Yverdon, Pestalozzi criou seu Institute, em 1804. Não demorou muito, ganhou fama internacional por ser um instituto experimental. Intelectuais de todo o mundo iam a Yverdon para ver como se dava a educação livre, aberta, integral. Isso mesmo: os portões do castelo ficavam abertos, e as crianças podiam entrar e sair. A pedagogia de Pestalozzi floresceu em diversas partes do mundo ainda no século XIX, pelo seu vanguardismo baseado no desenvolvimento da liberdade dos alunos. Para conseguir esse feito, ele se reunia constantemente com os professores para discutir o ensino. Um dado importante: todos os mestres eram bastante jovens, pois Pestalozzi acreditava que isso facilitaria o diálogo e a empatia entre eles e os alunos. Naquela época, a Europa vivenciava uma educação repressora. A Igreja Católica ainda centralizava o poder em torno da educação e não via problema em bater nas crianças para ensinar. Os colégios eram fechados com grades; e as crianças, verdadeiras prisioneiras ameaçadas pela palmatória. Pestalozzi inovou quando propôs que, para conduzir uma criança à fase adulta, há três caminhos: a cabeça, o coração e as mãos. Esses três caminhos devem ter um valor igual para que haja equilíbrio e se traduzam em desenvolvimento intelectual, moral e físico. O objetivo era, também, inspirar os alunos a serem professores.
Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental.
E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br