Edição 136

Professor Construir

O que é felicidade, afinal? Reflexões multidisciplinares

Rosangela Nieto de Albuquerque
Dennys Nieto de Albuquerque

E o que é felicidade, afinal?

O Dicionário Houaiss (2009) apresenta uma última definição de felicidade: “bom êxito, acerto, sucesso”, “boa fortuna, sorte”. Mas parece-nos que a felicidade transita por variáveis estados de bem-estar.

No curso da História, vemos que esse conceito surge discretamente com São Tomás de Aquino, no século XIII, e ganha força com o Renascimento e a Reforma Protestante, no século XV. Os principais autores da Reforma (Lutero e Calvino) acreditavam que os seres humanos deveriam ser alegres e que a alegria e o bem-estar deveriam ser entendidos como um favor divino.

Antes disso, a felicidade era considerada impossível de ser alcançada em vida, certamente ela pertencia aos deuses ou dependia da sorte. Durante muito tempo na História, acreditava-se que a felicidade era impossível de ser vivenciada.

No entanto, a partir do século XVIII, com o Iluminismo e a ideia de Sócrates — a de que a felicidade dependia do ser humano —, passou-se a acreditar que apenas o ser humano podia controlar seu destino, ele não dependeria mais da graça divina ou do capricho da fortuna.
Essa ideia foi sendo cada vez mais desenvolvida até chegar aos dias atuais, em que a tecnologia e a ciência permitem interferir na felicidade quando impedem que desastres naturais possam quase ser controlados, assim como as doenças.

Desse modo, a partir do século XVII, a felicidade se torna algo subjetivo, tornando-se difícil medir, mensurar, variando de pessoa para pessoa, que trilha caminhos distintos para alcançá-la.

“Os principais autores da Reforma (Lutero e Calvino) acreditavam que os seres humanos
deveriam ser alegres e que a alegria e o bem-estar deveriam ser entendidos como um favor divino.”

Então, o que a ciência diz sobre a felicidade?

Há algum tempo, vem sendo discutida a ideia de felicidade pela Psicologia Humanista. Autores como Carl Jung (1936–1969), Roberto Assagioli (1926), Abraham Maslow (1954) e Carl Rogers (1959), certamente, preocuparam-se com os aspectos positivos do desenvolvimento humano. A teoria de Seligman e Csikszentmihalyi, no ano 2000, que recebeu o nome de Psicologia Positiva, foi pautada nos estudos dos estados afetivos e das virtudes positivas, como a felicidade, a resiliência, o otimismo e a gratidão. Os autores, no período da década de 1990, investigaram os comportamentos positivos que têm como finalidade a felicidade humana, embasados na estrutura dos sentimentos, as emoções, as instituições (como família, escolas, comunidades e a sociedade em geral).

Seligman e Csikszentmihalyi (2000) apontam que o bem-estar subjetivo está relacionado ao que as pessoas pensam e sentem sobre a vida delas. Certamente, na prática, de acordo com os autores, bem-estar subjetivo é apenas um termo — mais científico — para o que as pessoas geralmente descrevem como felicidade. Para Seligman (2009), os componentes do bem-estar possuem características subjetivas, principalmente a emoção positiva; as pessoas que se consideram felizes relataram possuir vidas agradáveis.

O conceito de bem-estar subjetivo, nesta teoria, vai de acordo com o conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde (1946):

[…] o completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade”
(Preâmbulo da Constituição da OMS), que nos enfatiza a importância do estudo dos aspectos positivos do ser humano
(PUREZA et al., 2012).

Os estudos dos autores revelam que o foco nas experiências positivas pode contribuir para a prevenção e promoção de saúde, colaborando também com os mecanismos de enfrentamento das doenças (CALVETTI et al., 2007).

Os estudos acerca da felicidade se tornam cada vez mais importantes. A Psicologia Positiva (SELIGMAN, 2004) é baseada em três principais conceitos:

• Estudo das emoções positivas.
• Estudo dos traços positivos (forças, virtudes, inteligência, capacidade atlética).
• Estudo das instituições positivas (democracia, família, liberdade).

Para Seligman (2004), os estudos sobre a felicidade propõem que o bem-estar subjetivo pode ser medido por cinco fatores:

• Emoção positiva.
• Engajamento.
• Sentido na vida.
• Realização positiva.
• Relacionamentos positivos (relação com outros indivíduos).

A emoção positiva, certamente, é uma variável subjetiva que transita pelo que se pensa e se sente.
Engajamento também é uma variável subjetiva, enquanto o sentido na vida, os relacionamentos e a realização têm componentes subjetivos e objetivos. Nesse contexto, entende-se que há uma necessidade de articulação entre os elementos, assim o bem-estar não pode existir somente no pensamento: é uma combinação de todos esses fatores que sustentam o movimento.

A história da busca da felicidade vem se transformando durante os anos. Observa-se que o ser humano, atualmente, busca elementos que mais “deram certo” no passado e tenta alcançar esse sentimento tão difícil de ser definido.

A teoria da Psicologia Positiva conta com muitos autores que contribuem para entender melhor o que pode tornar o indivíduo mais feliz. Como diz Seligman (2004, p. 31), “A tarefa da Psicologia Positiva é descrever, em vez de prescrever, o que as pessoas efetivamente fazem para obter bem-estar”.

No entanto, o conceito de bem-estar ainda é muito subjetivo; para alguns, está relacionado à qualidade de vida, isto é, aos hábitos de vida mais saudáveis: alimentar-se melhor, praticar exercícios, meditar, ter saúde e boa situação financeira.

Para Seligman (2004), o bem-estar está relacionado a emoção positiva, engajamento, sentido, realização e relacionamentos positivos, que são significativos para a felicidade, assim como os outros fatores, como otimismo, estado de ânimo e resiliência.

Atualmente, muitos pesquisadores e estudiosos sobre a felicidade buscam produções cinematográficas promovendo reflexões… É o caso do menino-robô David, no filme Inteligência artificial

Dois mil anos se passaram, e o menino-robô David é retirado do mar congelado por uma espécie extraterrestre avançada. Os aliens dizem a David que ele é a memória viva da extinta civilização humana. E perguntam o que eles podem fazer por ele. É muito importante para eles (aliens) que David seja feliz. Este é um pequeno resumo de uma cena do filme de Steven Spielberg, com roteiro baseado na obra Super-toys last all summer long, ou Superbrinquedos duram o verão todo, de Brian Aldiss.

Nos primeiros contatos da máquina — criada para ser perturbadoramente semelhante aos humanos — com essa nova espécie biológica, vê-se que ela aparenta ser tecnologicamente superior ao que os humanos foram (mesmo no universo de ficção científica do filme) e que, certamente, demostra ser muito mais humana e evoluída (eu diria até mais bondosa do que nós, humanos, jamais ousamos ser).

Essa constatação se dá na explícita fala do referido ET sobre a importância da felicidade do outro/David para eles. E, depois de o robozinho dizer o que ele queria/necessitava, eles concretizam seu sonho. David parece ser tratado com “humanidade” pela primeira vez. Agora ele é reconhecido como um sujeito desejante. A Fada Azul realizou finalmente seu desejo. E, assim como fez anteriormente quando transformou o boneco de madeira Pinóquio em menino de verdade, parece ter transformado (ou dado o reconhecimento) o bonequinho mecânico em pessoa real. Ele agora poderia encontrar sua mãe e, enfim, ser amado por ela…, o que acontece pela primeira vez e por um único dia.

Muitos questionamentos surgem dessa história. O que nos torna humanos? Eram esses seres não humanos, aliens e androides, mais humanos do que nós jamais fomos como sociedade?

“A história da busca da felicidade vem se transformando durante os anos.
Observa-se que o ser humano, atualmente, busca elementos que mais ‘deram certo’
rno passado e tenta alcançar esse sentimento tão difícil de ser definido.”

Vários tópicos poderiam ser levantados, mas precisamos nos ater ao fato de ser importante para alguém, de que o outro seja feliz. Não a própria felicidade, mas a do outro. Outro que nem ao menos é humano, outro que nem mesmo é um ser biológico. Essa expressão máxima de respeito e empatia parece convergir para o exercício e a realização da felicidade.

É sabido que a felicidade é um conceito subjetivo e muito pessoal. Há pessoas que, mesmo contra todas as expectativas, parecem viver intensamente a felicidade. Homens e mulheres com histórias de vidas marcadas por dor e sofrimento, acometidos por graves injustiças ou desprovidos de saúde física e mental, a quem foram negados o acesso aos direitos, bens materiais e simbólicos a que todos deveriam ter acesso e, mesmo assim, excepcionalmente, declaram-se e se demonstram felizes.

O tema felicidade é sério e preocupou os indivíduos desde o início da civilização. Aristóteles afirmava que a meta do ser humano era a felicidade, assim ele poderia realizar-se.

Desse modo, não poderíamos deixar de explicitar elementos objetivos que geram sofrimento psíquico e, em contrapartida, fatores objetivos que auxiliam na consecução da felicidade. Podemos, sim, afirmar que pobreza, com as suas mais variadas facetas e desdobramentos, sim, gera sofrimento psíquico. E, antes que nos venham lembrar da existência de pobres ou doentes felizes, devemos salientar que as exceções não devem ser tomadas pela regra, muito menos o homem médio comum deve ser comparado a santo, asceta ou iogue.

Da mesma forma que, de modo geral, alguns fatores objetivos parecem nos afastar da tão sonhada felicidade, outros, no entanto, aproximam-nos dela. Não precisamos citar a pirâmide das necessidades humanas de Maslow, que, ao nosso ver, traz elementos dos mais básicos (físicos) aos mais complexos (subjetivos) — que propiciam a autorrealização e plenitude do ser humano —, considerando-se o homem na sua inteireza biopsicossocial e espiritual.

Na contemporaneidade, parece que um imperativo de felicidade se estabelece. Precisamos ser felizes a todo custo. Há uma necessidade de gozo. Sem o qual o sujeito não se reconhece como tal. Estamos infelizes não pelo que nos foi negado, mas porque não aproveitamos o bastante, e o bastante é sempre o máximo diante das possibilidades. Um ideal do ego tirano, um superego exigente e um id, sendo ele próprio desejante. E o contato com a realidade, talvez, um pouco mais distante.

E a felicidade pressupõe esse faceamento com a realidade? A realidade hostil tal qual ela se apresenta? Ou faz-se necessário um descolamento da realidade quase como um flerte psicótico? Alienação traz felicidade? Existe felicidade ou apenas alívio neurótico? Felicidade depende de sentido e utilidade para a vida? A vida deve fazer sentido? É possível atribuir sentido a ela? Ou a vida deve ser apenas vivida com todas as suas incongruências, alegrias e dores, porque, como dizia Kant, a realidade última das coisas é incognoscível? Sem falar, é claro, da concepção utilitarista que a modernidade, aficionada por produção, tenta atribuir à vida para a obtenção da felicidade. Entrelaçado ao conceito de felicidade, parece ter ideias satélites (associadas ao racional) nessa camada racional/apolínea em que o dionisíaco (prazer) surge sempre negado.

“Estamos infelizes não pelo que nos foi negado,
mas porque não aproveitamos o bastante,
e o bastante é sempre o máximo diante das possibilidades.”

Então, uma concepção de felicidade estritamente hedonista seria uma solução? Para os ateus, parecia uma saída lógica, já que só se vive uma vez, e a vida estaria limitada à dimensão física. Entretanto, isso não ocorre; e eles parecem ter introjetado valores civilizatórios e humanísticos até mais profundamente que aqueles que seguem uma religião.

Adentrando brevemente na seara metafísica, mas não perdendo de vista a faceta espiritual humana que almeja a felicidade: do Samadhi dos sábios da Índia à epifania dos santos, muitos afirmam ter experimentado o êxtase da felicidade suprema através da experiência religiosa. O próprio Sidarta Gautama, o buda histórico, elabora toda sua doutrina em quatro nobres verdades: (1) a existência do sofrimento/insatisfatoriedade; (2) a origem do sofrimento/insatisfatoriedade; (3) a sua cessação; e (4) o caminho que leva à cessação do sofrimento/insatisfatoriedade — o caminho Óctuplo. Dessa forma, admite-se (1) que o sofrimento existe; (2) de que forma ele surge; (3) que ele pode acabar; e (4) a maneira de acabar com o sofrimento.

De modo geral, o conceito de felicidade mudou durante a História; nos últimos 5° anos, as definições acerca da felicidade nos remetem a um bem-estar subjetivo com um constructo muito diverso.

Considerações finais

No Brasil, a Psicologia Positiva ainda é pouco estudada; portanto, são necessárias mais pesquisas com a população brasileira, pois a relação cultural tem grande influência nos resultados.

Os estudos comprovam que a felicidade é uma forma de ser e estar no mundo; ela está intrinsecamente ligada à busca pela qualidade de vida, pela noção de saúde, aos estados afetivos e às virtudes positivas.

Entende-se que a Psicologia Positiva, de maneira subjetiva e individual, como ciência e configuração prática, é uma teoria muito ampla, e o objetivo maior e principal é alcançar o entendimento científico e efetivo de como ajudar indivíduos, famílias, instituições e comunidade em geral a prosperarem e desenvolverem suas forças e virtudes, de modo a atingir mais bem-estar.


Rosangela Nieto de Albuquerque é Ph.D. em Educação (Universidad Tres de Febrero), pós-doutoranda em Psicologia, Doutora em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Linguagem, psicanalista clínica, professora universitária de cursos de graduação e pós-graduação, psicopedagoga clínica e institucional, pedagoga, licenciada em Letras (Português/Espanhol), autora de projetos em Educação e da implantação de uma clínica-escola de Psicopedagogia Clínica como projeto social e autora e organizadora de treze livros nas áreas da Educação e da Psicologia.

Dennys Nieto de Albuquerque é advogado, graduado em Gestão Financeira, pós-graduado em Relações Internacionais, estudioso de História, Filosofia e Psicologia. E-mail: dennysnieto314@gmail.com.

Referências
BRASIL. Proposta de emenda à Constituição nº 19, de 08 de julho de 2010.
CALVETTI, P.; MULLER, M.; NUNES, M. Psicologia da saúde e Psicologia Positiva: perspectivas e desafios. Psicologia: Ciência e Profissão, 27(4): 706-717. 2007.
CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: The psychology of optimal experience. New York: Harper & Row, 1990.
HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
PUREZA, J. R.; KUHN, C. H. C.; CASTRO, E. K.; LISBOA, C. S. M. Psicologia Positiva no Brasil: uma revisão sistemática da literatura. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 8(2): 109-117. 2012.
SELIGMAN, M. E. P.; CSIKSZENTMIHALYI, M. Positive Psychology: an introduction. American Psychologist Association. Jan. 55(1): 5-14. 2000.
SELIGMAN, M. E. P. Felicidade autêntica: usando a nova Psicologia Positiva para a realização permanente (Authentic Happiness: Using the new Positive, 2004).

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