Edição 117

Matéria Âncora

O que falta e o que completa?

Lécio Cordeiro

Em 2018, a Companhia das Letrinhas publicou um singelo livrinho, daqueles que se passam supostamente por literatura infantil, mas põem os adultos para pensar. Trata-se de A parte que falta, do norte-americano Shel Silverstein. É um voo psicanalítico, como A história de Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach, ou O pequeno príncipe, clássico de Antoine de Saint-Exupéry. Como o título sugere, na história de Silverstein o personagem vive à procura da parte que lhe falta. Bem, ao longo de sua trajetória, ele encontra várias partes, uma a uma, e as perde, também uma a uma. Então sente falta, volta a procurar, acha, perde, quebra-se, acha de novo, perde de novo, sente falta. Há humanidade demais nessa circularidade.

A narrativa de Silverstein nos conecta diretamente ao tema desta edição da Construir Notícias: O que não pode faltar na minha escola?. A pergunta é objetiva, mas pode ser respondida de diferentes maneiras, inclusive subjetivamente. É uma pergunta-convite, por isso colocamos, a seguir, uma página inteira para você respondê-la. A intenção é fazer com que os professores expressem, diretamente à diretoria, quais são seus desejos em relação à escola. Evidentemente, essa atividade não pode trazer desconforto nem gerar mal-entendidos. O fato é que muitos de nós não temos abertura para falar o que nos falta na escola. A menos que você seja um monge do Tibet ou do Nepal, como Matthieu Ricard, considerado o homem mais feliz do mundo, sempre vai faltar algo.
Às vezes, falta muita coisa; noutras, só uma besteira, mas que faz um estrago danado. Para muitos professores, falta o essencial. Aí você, que sente falta de algo, mas está trabalhando nas condições ideais de temperatura e pressão, percebe que esse algo não é tão indispensável assim. Pior que não demora muito, ele volta a ficar ali, no canto, incomodando, faltando. O objetivo, portanto, é identificar as faltas e, em seguida, fazer de tudo para preenchê-las. Mas não se iluda: cedo ou tarde, elas sempre voltam. E é importante que voltem.

Anos atrás — você se lembra disso, com certeza —, um personagem de Hanna-Barbera fez muito sucesso, sobretudo pela sua negatividade, pelo seu pessimismo: a hiena Hardy. Para Hardy, a vida era um fardo muito pesado. Nada o motivava e tudo sempre daria errado, ele tinha certeza. Daí o seu bordão: “Oh, céus! Oh, vida!”. Lembrou agora? Pois então: aposto que você não se lembra de que Hardy tinha um amigo que procurava a todo momento animá-lo — o leão Lippy —, um otimista incansável. Por alguma razão, Hardy ficou mais famoso que Lippy. Será porque somos mais pessimistas que otimistas diante da vida? A grande questão, portanto, é o que vamos fazer com essa falta. Se ela nos paralisar, ficaremos como a hiena Hardy, arrastando-nos pela escola incapazes de reagir aos estímulos da vida. É provável que estejamos diante de um problema extremamente complexo, mas muitas vezes subestimado: a depressão. Nesse caso, como em qualquer outra doença, é necessário tratamento adequado. Os psiquiatras e psicólogos são unânimes em afirmar que, antes de cuidar de qualquer pessoa, precisamos cuidar de nós mesmos. É a lógica das instruções de voo: “Em caso de emergência, máscaras cairão. Primeiro coloque em você, depois no outro”. Obviedade: é impossível motivar um aluno se você está desmotivado.

Chegamos ao outro objetivo desta edição da nossa revista: levar nossos leitores a identificar na escola o que nos completa como professores. Ou seja, o que nos falta não é exatamente o que nos completa. Explico melhor. Por certo, há vários pontos que contribuem para a sua satisfação em trabalhar na escola — os alunos, os outros professores, o sentimento de fazer parte de uma equipe, a sensação de que sua voz é ouvida, os recursos digitais, a pontualidade do pagamento, a localização, etc. A seguir, há uma folha em branco na qual você deverá identificar tudo o que te completa na escola. Alguns desses apontamentos podem até ter sido faltas que um dia foram preenchidas e hoje contribuem para a sua satisfação em trabalhar nela. A intenção é fazer com que esses pontos também cheguem à gestão da escola.

Como você pode ver, identificar o que nos falta e o que nos completa não é tarefa tão simples. Quem vê a vida na perspectiva da hiena Hardy certamente terá muita facilidade em apontar o que lhe falta, mas sentirá dificuldade em enxergar o que lhe completa. Do mesmo modo, quem é otimista, como Lippy, apontará rapidamente tudo o que lhe completa, mas precisará pensar um pouco sobre o que lhe falta. Este, acredito, é um ser raro, difícil de se encontrar. A finalidade deste exercício, portanto, é ponderar essas duas questões, fundamentais para a gestão da escola traçar metas para os próximos anos. Além do convite para o diálogo reflexivo, há aqui um acordo: o corpo docente e a direção devem se comprometer a entregar o seu melhor, afinal sempre falta algo, mas — convenhamos — nunca falta tudo. A busca pela completude deve ser legítima para os dois lados.

Há uma parábola segundo a qual dois cachorros vivem dentro de nós, um bravo e um manso, que estão sempre brigando. A pergunta é: quem sempre vence? Bem, vence aquele que alimentamos mais. Trazendo essa reflexão para o nosso tema, entendemos que dentro de nós há um Hardy e um Lippy. Cabe a nós definir qual deles será alimentado.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental. E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

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