Edição 121

A fala do mestre

Os vendedores de aula e a meritocracia

Lécio Cordeiro

CN_121_-_A_FALA_DO_MESTRE_-_L_cioQuando eu decidi que faria vestibular para Letras, fui informado, mais de uma vez, de que passaria fome. Era uma época de grande desvalorização do magistério, com baixos salários, jornada exaustiva e falta de reconhecimento social. Ainda hoje é assim. Apesar disso, aos 18 anos eu não conseguia me ver fazendo outra coisa. Além do desejo de ensinar, tinha uma visão bastante limitada do que era a docência. Na prática, queria viver bem, ser um bom vendedor de aulas e ganhar dinheiro, como muitos dos professores que tive no Ensino Médio. Naquele tempo, os cursos pré-vestibulares eram uma espécie de Serra Pelada. Então muitos emigravam para os cursinhos na esperança de sucesso e dinheiro fácil. Ingênuo, eu pensava: “Se eles conseguiram, eu posso conseguir”. Estava convicto de que meu sucesso dependeria exclusivamente de mim, do meu esforço. No fundo, acreditava que, diferentemente do garimpo, onde a sorte é fator primordial, na sala de aula era preciso esforço. Esse era o pensamento, enfatizado exaustivamente pelos vendedores de aula. Passada a febre do ouro, o mercado dos cursinhos esfriou, mas muitos continuam disseminando essa falácia. Jogam sobre os ombros dos alunos a certeza de que são os únicos responsáveis pelo próprio destino. A aprovação é o prêmio justo pelo esforço e por tudo o que se atrela a ele: talento, habilidade, inteligência, perseverança, etc.

Na nossa sociedade, o sucesso profissional está intimamente associado à noção de mérito. E, por trás dele, está a classificação das pessoas entre vencedoras e perdedoras. Essa ideia é tão perigosa quanto sedutora. De fato, o mérito se apresenta através de um malabarismo ideológico e, como tal, parece limpinho, cheiroso, inofensivo, fazendo as pessoas acreditarem que têm todas as condições de vencer e que isso depende, exclusivamente, do esforço individual. Mas não é bem assim. A realidade mostra que, na longa corrida em busca do sucesso, algumas pessoas dão a largada com pesos amarrados aos pés. Isso vale para os alunos e para os professores.

Se olharmos ao nosso redor, veremos a desigualdade por toda parte, da nossa casa às nossas salas de aula. Não acredita? Levante a mão quem liga o taxímetro da docência às 7h e só o desliga às 22h. Quem não tem tempo para estudar, pesquisar, se aperfeiçoar? Quem trabalha de domingo a domingo e ganha o piso, nada mais que isso. Pois bem, não é razoável pensar que, se você ainda não ascendeu socialmente, não está se esforçando o suficiente. Com nossos alunos acontece o mesmo. Supor que todos têm iguais condições de vencer é acreditar que todos estão na mesma posição na linha da partida, isto é, que todos têm família estruturada, três refeições por dia, casa organizada, roupas limpas, ensino de qualidade, livros, apoio, etc. Deveria ser assim para todas as crianças, mas não é. Há uma simplicidade perversa em pensar que um aluno que tem um desempenho ruim não melhora porque é preguiçoso. Pior ainda: pensar que ele é burro.

Ou seja, um dos aspectos mais cruéis da meritocracia é que ela sublima a empatia e, nessa perspectiva, esvazia de sentido qualquer ação altruísta. Por que devo me colocar no lugar do outro se ele é um preguiçoso, fanfarrão? Por que devo ajudar meu colega se ele vai disputar comigo uma vaga na universidade?

CN_121_-_A_FALA_DO_MESTRE_-_L_cioO que fica para professores e alunos sobre esta reflexão? Fica um inconveniente: o sucesso não depende apenas do esforço individual. Para diminuir a desigualdade entre eles, é fundamental reconhecer que a trajetória para o Sol não é uma questão de mérito. Precisamos atuar no sentido de eliminar as forças que os empurram para baixo. Se um dia conseguirmos colocar todos em condições iguais para vencer a corrida, aí sim, poderemos falar de mérito. Mas essa projeção é tão hipotética que inviabiliza o raciocínio. Então, sejamos realistas: enquanto as desigualdades persistirem, busquemos, pelo menos, não estimular que eles se digladiem. O pessimista dirá: Lécio está exagerando, porque o mercado de trabalho é um Coliseu. Minha joia, o mercado de trabalho é assim porque muitas escolas estão formando gladiadores, não pessoas resilientes, comunicativas, colaborativas. Daí a importância das competências socioemocionais propostas pela BNCC, mas isso é outra conversa.

Já para os professores, precisamos pensar na escola como um todo que vai muito além da nossa sala de aula. Mais que isso: precisamos ver a escola em uma perspectiva que transcende o momento presente. O processo de ensino-aprendizagem deve considerar o passado e o futuro. Esta reflexão está na base da progressão na aprendizagem — o que o colega que veio antes de mim me legou e o que devo legar para aquele que vem depois, no ano seguinte? Esta reflexão é útil justamente porque nos mostra que não estamos sozinhos, que, se um aluno vence, vencem todos os envolvidos na sua trajetória, inclusive as forças sociais ocultas que o impulsionaram para cima.

Meus amigos, muito além do nosso mérito individual, precisamos buscar o mérito coletivo. Nestes tempos de likes, seguidores, curtidas, é comum que muitos professores passem a se promover nas redes sociais. Tudo bem, o mundo está assim. O problema é que as redes sociais funcionam, para muitos, como mecanismo que premia o mérito individual e se retroalimenta na relação entre exposição e recompensa. Ao que parece, essa postura é mais comum entre os colegas que trabalham com o Ensino Médio, pois estão mais próximos da Serra Pelada dos cursinhos pré-vestibulares. E é nesses cursos que a tirania do mérito é louvada. Nada contra aqueles que estão na foto do post para divulgar seus cursos. Mas, por favor, atentem para a realidade: a própria existência dos cursos — a cada ano mais seletivos, caros e competitivos — é a personificação da meritocracia. Alheios a isso, os vendedores de aula estão lá, na foto do post ou do outdoor de braços cruzados e expressão enfezada. Se vão tirar fotos, que tirem abraçados, mas tenham a humildade de entender que esse abraço deve ser muito mais abrangente que apenas o simbolismo do momento. Mais ainda: que esse abraço signifique a união por um sistema educacional igualitário, justo, que dê aos alunos as mesmas oportunidades. Façamos o máximo para não naturalizar um funcionamento estrutural e social injusto que perpetua absurdos.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental.

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