Edição 114
Em discussão
Reflexões sobre o ensino híbrido
Grasiela Dourado
A educação é uma manifestação cultural, constituída na história e compõe uma teia de
transformações sociais, políticas e econômicas, forjada por lutas, rupturas. A
educação é diretamente vinculada a tradições, valores, ideias e costumes. A escola é um espaço de construção cultural, social, diretamente vinculada a tradições, valores, ideias e costumes.
Entendendo a história da evolução da educação, depreendemos a velocidade do movimento de mudança. Mudar em um ambiente escolar significa consulta, negociação, respeito aos pares e às normas legais.
Na conjuntura atual, as escolas que ainda vivem em modelos do passado têm sido pressionadas a mudar. E nem todas mudam inovando, criando, entendendo o movimento, mudam no que lhe é conveniente ou refém da pressão externa. E em pandemia, mudar se tornou a ordem do dia. Ou muda ou morre!
Aprendemos por meio de processos estruturados, mas aprendemos informalmente com a sociedade, com o estudante, com o publicitário, com o youtuber e até com a plataforma de ensino. “Nada do que foi será”, como afirma a música popular.
Ao tempo em que estudamos novas formas de ensinar e aprender, estamos praticando o gerundismo: aprendendo, praticando, fazendo, refazendo, errando e acertando. Há décadas estudamos interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, metodologias ativas, e estas ainda hoje não são hegemônicas. O tempo de estudar é um e o de praticar é outro para muitos educadores.
A análise da mudança de perfil do professor durante a quarentena denota o quão desafiador foi para o professor analógico se tornar digital. A pressão externa gerou grande mudança metodológica, técnica e comportamental. O novo cenário agora aponta que, no pós-pandemia, o ensino híbrido será a alternativa
que concilia o ensino remoto e o presencial, o que significa um alento para uns
e um desafio para outros.
A forma como as escolas velozmente mudaram suas práticas, voltando-se para o digital, denota que estamos em ambiente fértil para a implantação do ensino híbrido, onde haverá grande interação do presencial com o digital.
Um pouco da história
Em 2008, Michel Horn (EUA) constitui a primeira experiência intitulada Blended learning junto com Clayton Christensen Institute.
No Brasil, em 2014, o Instituto Península e a Fundação Lemann organizaram grupos de experimentação com dezesseis professores em quatro estados do Brasil.
Em 2016, foi publicado o livro Ensino híbrido: personalização e tecnologia na educação, resultado das reflexões do Grupo de Experimentações em ensino híbrido, criado pela Fundação Lemann e pelo Instituto Península. Após a leitura do livro e o acesso a reportagens, fui ao Rio de Janeiro fazer uma imersão em uma escola, o que muito me motivou a continuar estudando e difundindo.
Em 2020, o ambiente de isolamento social desafia a escola e o educador a reinventar sua prática. E a categoria, de forma guerreira, dormiu analógica e acordou digital.
Planejamento é a chave
O ensino híbrido parte do princípio de que não existe uma forma única de aprender, reconhecendo a aprendizagem como um processo evolutivo e contínuo.
Compreendemos que se os sujeitos têm formas diferentes de aprender, o professor tem que ter diferentes formas de ensinar. Parece óbvio, mas a sala de aula hegemônica — com todos enfileirados, ouvindo as mesmas coisas, ao mesmo tempo, sendo avaliados da mesma forma e submetidos às mesmas tarefas — opõe-se à personalização do ensino, pilar do ensino híbrido.
Para um ensino personalizado, podemos começar analisando a concepção de educação, de educador e de estudante e, a partir daí, repensar o seu planejamento de ensino, no qual fica revelada a intencionalidade da prática educativa. Se acredita em processos assíncronos, metodologia ativa, interdisciplinaridade, sala de aula invertida, autonomia, pesquisa, o seu planejamento não pode ter foco na aula tradicional presencial.
Foco no híbrido
As metodologias e os conjuntos de técnicas que envolvem o ensino híbrido têm grande foco na resolução de problemas ou na criação de projetos complexos, tanto em grupo quanto individualmente.
A aprendizagem é coordenada por professores que cuidam de cada estudante de forma personalizada, e isso não significa uma aula para cada um, mas o entendimento do estágio de maturidade do estudante sobre cada objeto de conhecimento a ser trabalhado.
A flexibilidade, a autonomia para se personalizar, misturar áreas, turmas e espaços, onde os estudantes controlam espaço, tempo e forma de aprendizagem, é uma realidade nas escolas que se anteciparam na prática do ensino híbrido.
Ouso chamar essa educação de “estudantocêntrica”, movimento em que o foco não está no conteúdo ou na aula do professor; o foco está no principal sujeito da educação: o estudante!
Tudo na escola deve ser “com” e “para” o estudante. O “porque” motiva a pesquisa, o “onde”, o “como” são escolhidos pelos estudantes a partir da análise das hipóteses criadas para sua pesquisa ocorrer.
Modelos de Ensino Híbrido
Modelo Flex
Os estudantes recebem uma lista de temas para pesquisar, o ensino ocorre de forma personalizada, a maioria do tempo on-line, e o professor fica disponível para tirar dúvidas sempre que necessário. Os grupos podem ter estudantes de turmas diferentes, sendo esse modelo considerado disruptivo, ainda sem referência de escolas no Brasil.
Modelo à La Carte
O estudante de posse dos objetivos gerais é o responsável pela organização de seu estudo, assemelhado ao home schooling e à EAD. Ele controla o tempo e o local da aprendizagem. Em parceria com o educador, em projetos personalizados com pelo menos um curso ofertado on-line. O modelo propõe uma organização de escola sem regulamentação no Brasil.
Modelo Virtual Enriquecido
O tempo é dividido entre aprendizagem on-line e presencial, e todas as disciplinas podem ser feitas on-line, possibilitando aos estudantes comparecerem em aula presencial uma vez por semana. É considerado disruptivo, sem regulamentação na Educação Básica no Brasil.
Modelo Rotacional
Mais fácil de ser adaptado para a Educação Básica, permite o planejamento do professor.
Pode ser trabalhado de diferentes formas como:
• Rotação por Estação
• Laboratório Rotacional
• Sala de Aula Invertida
• Rotação Individual
Idealizado para aplicação nesta etapa pós-pandemia no Brasil.
Tecnologia
Apesar de, no primeiro momento, a tecnologia ter aferido status a instituições que investiram, na atualidade os investimentos em tecnologia se tornam demanda focada na aprendizagem. Não se trata de exibição em outdoor ou sala de matrícula, tecnologia deve passar a ser rotina na sala de aula e fora dela.
Instituições sem tecnologias sofisticadas podem buscar integrar os espaços físicos e virtuais e contar com equipamentos dos estudantes.
A educação híbrida vai permitir trazer o mundo inteiro em tempo real para o universo escolar, com suas diferentes ideias, em uma troca intensa, rica e ininterrupta. Essa ação amplia as possibilidades de pesquisa on-line, de trazer materiais importantes e atualizados, gerando mais participação e interação dos estudantes nas aulas e o desenvolvimento de competência digital.
É necessário haver transformação do espaço escolar, com as tecnologias focando na aprendizagem e no estudante, não tecnologia para exposição e transmissão de informações, não ferramental meramente, mas metodológica.
As tecnologias estão a reboque do atendimento dos objetivos educacionais, a serviço das pesquisas, do planejamento e desenvolvimento de projetos. A tecnologia e as novas tecnologias a serviço da melhoria do processo ensino-aprendizagem.
Papel do professor
A mudança educacional depende da qualidade de formação dos professores e como isso determina suas práticas pedagógicas.
Precisa haver introdução de tecnologias digitais integradas ao currículo e à rotina do professor principalmente porque estamos em uma época onde dispositivos e softwares são cada vez mais utilizados.
O estágio de maturidade digital deve ultrapassar os laboratórios de informática enquanto espaço para ser frequentado com dia e hora marcados, dentro de uma matriz curricular, vigiado por um adulto, para um estágio em que o professor domine as ferramentas, tenha condição financeira de adquirir seus próprios dispositivos e conhecimento para inseri-los nas suas aulas.
A função do professor no ensino híbrido é voltada para a tutoria de aprendizado, sendo capaz de identificar problemas e agir com foco em qualificar e personalizar o ensino. Comportamentos de mentoria, de facilitação, de mediação mais do que teorizado devem fazer parte da prática quotidiana.
Espaço facultativo
Geralmente na aprendizagem presencial temos salas fechadas, carteiras individuais e um ensino focado na apresentação do professor. As metodologias estimulam a obediência, a concentração e a repetição a partir de exibição de conteúdos pré-formatados.
Para a prática do ensino híbrido, temos que repensar a organização do ambiente, modelando-o de forma que favoreça a aprendizagem, a colaboração entre os estudantes. O espaço do professor não é exclusivamente na frente da sala, deixando-o mais próximo do estudante, com comportamento mais relacional, mais sociável. O espaço do estudante é diverso, ele estará na sala, no jardim, na biblioteca, em casa, na empresa, nos corredores, onde o conhecimento que necessita estiver.
Ao transformar a sala, o comportamento se transforma; ao mudarmos a regra de proibição de celulares, tablets e computadores, caminhando para a aceitação desses equipamentos e sua inserção nos objetivos educacionais, a aula se torna mais colaborativa, pois abre uma janela para contribuições que não advêm exclusivamente do professor ou do estudante, mas do mundo que entra na sala de aula pela janela da tecnologia.
Com a mudança, a sala se torna mais dinâmica, o trabalho fica mais colaborativo, o professor estará iniciando sua caminhada rumo à personalização do ensino, deixando pra trás a massificação do ensino.
O professor certamente encontrará a forma de inserir a tecnologia, focando na aprendizagem significativa, ao tempo em que temos resistência de alguns professores em migrar seus métodos de ensino tradicionais para o meio digital; temos exemplos ricos de práticas, com métricas de resultado.
Quando a inovação na sala de aula passa a ser um projeto da escola
A equipe de gestão deve ser organizada para revisão do currículo, projeto político-pedagógico, revisão da estrutura, espaços, tempo, gestão pedagógica, boa conexão à Internet e aquisição de dispositivos digitais.
A equipe de técnicos e professores deve implementar ações de transformação no ambiente, ser capacitada por autodidatismo, com investimento próprio e da escola.
A tecnologia, por si só, não fará a transformação, é preciso criar um ambiente capaz de incorporar iniciativas, de forma colaborativa e de origens diversas, oriundas de diferentes esferas. É preciso mudar a concepção de educação do educador, mexer nas suas crenças.
Acredito ser o ensino híbrido um caminho de diversidade capaz de criar uma nova identidade para a educação brasileira.
Grasiela Dourado é pedagoga, Especialista em Didática e Metodologia de Ensino, consultora, palestrante, tem MBA em Gestão de Pessoas e em Business Transformation e atua com formação de professores há mais de 30 anos.