Edição 113

A fala do mestre

Sejamos resilientes como as crianças

Lécio Cordeiro

Desde março estamos vivenciando uma pandemia que atingiu o mundo de forma única em toda a História. De uma hora para outra, mudamos nossos hábitos. Muitos de nós trouxemos o trabalho para dentro de casa e tivemos de enfrentar todos os percalços que esse deslocamento nos impôs. Por outro lado, as crianças e os jovens não trouxeram a escola. Foi ela que invadiu as casas, convertida em uma tela. Desde o primeiro momento, os alunos foram jogados no ambiente virtual sem qualquer preparação para isso. E, junto com eles, os professores. Na análise superficial de quem não compreende a complexidade que envolve a dinâmica escolar, como a maior parte dos pais, as aulas virtuais são basicamente as mesmas que seriam ministradas em sala, presencialmente. Talvez por isso não vimos ninguém ir à varanda bater palmas para os professores. Alguns pais até os alçaram à categoria de heróis, sobretudo aqueles que atuam na Educação Infantil, mas essa valorização intempestiva e efêmera tem mais a ver com a dificuldade de lidar com a criança pequena em casa o dia inteiro que com a complexidade do processo de ensino-aprendizagem. Ou seja, elogiou-se o heroísmo dos profissionais da Educação Infantil não pelo trabalho que efetivamente executam, mas pelo papel de babás que involuntariamente ocupam. No fundo, o novo coronavírus trouxe à tona verdades inconvenientes sobre a educação brasileira que historicamente eram varridas para baixo do tapete.

A primeira inconveniência, certamente a mais relevante, é a evidência de que vivemos em um país extremamente desigual. Ao mesmo tempo que alcançamos resultados equivalentes aos da Finlândia, estamos brigando com o Níger, o país mais pobre do mundo. O fato é que, como país, estamos muito distantes do ensino de qualidade. Se essa triste realidade é evidente no chão da sala de aula, como mostram repetidamente os resultados dos nossos alunos em exames nacionais e internacionais, como o Pisa, no ambiente virtual o poço é extremamente profundo. Segundo o TIC Kids Online 2019, estudo encomendado pelo Unicef, 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos não têm acesso à Internet em casa no Brasil. Em números totais, eles somam 17% de todos os brasileiros nessa faixa etária. Pior: falta Internet e falta computador, pois mais de 30% dos alunos não possuem o equipamento, e 35,7% dos que têm precisam compartilhá-lo com três ou mais pessoas. Mas acesso à Internet e ao computador é luxo em um país onde, segundo o IBGE, somente metade dos domicílios tem abastecimento de água, esgoto sanitário ou fossa séptica, coleta de lixo e até dois moradores por dormitório. Ou seja, do outro lado do muro, metade dos brasileiros não desfrutam de domicílios salubres, e essa adversidade se soma a outras tantas que fazem desse “domicílio” um ambiente inadequado para os estudos de 42% dos alunos. Meus amigos, independentemente de pandemia, nossa educação é minimalista há muito tempo.

A verdade é que o universo virtual impõe uma dinâmica muito diferente, e, como é transitório, pelo menos no contexto atual, quem conseguir fazer o essencial terá dado um grande salto. Explico por quê. O primeiro ponto que precisamos considerar é uma obviedade: esta situação é completamente atípica. O que não é tão óbvio são as consequências. Uma delas, talvez a mais evidente, é a certeza de que boa parte dos nossos alunos não está bem, sobretudo emocional e afetivamente. Muitos deles não estão lidando com a verdade em casa, isto é, a certeza de que, apesar dos percalços, isso vai passar. Ao receber dos pais a mentira, a negação, o desespero, a revolta, eles entram em conflito, porque, embora muitos ainda não saibam formular a verdade, eles a intuem, pressentem a mentira e a devolvem em forma de um sintoma inesperado, uma angústia, uma ansiedade. Outros estão lidando com verdade demais, e ela chega de maneiras extremamente dolorosas, como o desemprego, a violência, a fome, a morte. Assim, a missão dos pais (e em boa medida essa missão é também nossa) consiste em reconstituir o cotidiano dos alunos, procurando aproximá-los da realidade com os cacos que sobraram. Estou falando da nova realidade, não daquela anterior, presencial; uma realidade que encare as aulas remotas como o que elas são realmente.img2

As aulas virtuais seguem uma dinâmica muito diversa daquela que caracteriza as aulas presenciais. O ponto fundamental dessa distinção é que se trata de experiências cognitivas e subjetivas diferentes, seja em relação à temporalidade, seja em função do volume, da expressividade, do espaço, do método, etc. Assim, tudo o que fizermos no ambiente virtual não será uma aula presencial, mas um esforço bélico em busca da continuidade e da constituição de um novo cotidiano. A intenção é garantir o desenvolvimento cognitivo dos alunos, mantendo seus vínculos afetivos. Mas que fique claro, sobretudo para as famílias, que tudo isso será uma gambiarra, porque não passaremos repentinamente de um modelo para outro de forma segura e indolor. É necessário esforço, reflexão, estudo, prática, resiliência. Escolas do mundo inteiro estão em busca de um modelo ideal de aula virtual. Passados os desafios dos primeiros dias e muitos debates, hoje temos certeza de que não há apenas um modelo ideal, mas vários. Não sabemos qual deles é o melhor, mas sabemos quais são os piores. Entre estes, o mais grave indiscutivelmente é a inoperância. Não fazer nada pelos alunos é uma postura assaz prejudicial. Essa verdade atinge a todos os envolvidos com a educação, do gestor público aos professores. Fazer demais, sobrecarregando os alunos, enchendo-os com uma rotina estafante de atividades e aulas remotas é um modelo que se revela, no outro extremo, não só inútil, mas também prejudicial.

Então, meus amigos, cumprindo nossa missão social, precisamos fazer a nossa parte, utilizando os recursos de que dispomos com a consciência tranquila de que não podemos ir muito além. Certamente seremos muito cobrados por isso, mas não será a primeira nem a última vez que nos dirão o que devemos fazer. O segredo está, portanto, na temperança, na sensatez, na paciência. Se dermos as condições mínimas para os alunos passarem pelas experiências, por mais traumáticas que sejam, no fim eles voltarão à sua forma, pois são extremamente resilientes, sobretudo as crianças. Ao final, serão capazes de integrar essas experiências à sua história e falarão sobre elas no futuro, como nossos pais e nossos avós falaram sobre as guerras, as doenças, as dificuldades que marcaram suas vidas. Eram histórias de dor, de perda, mas que continham forte teor de superação. Sejamos, pois, muito resilientes, como as crianças.

Lécio Cordeiro é formado em Letras pela UFPE. É editor e autor de livros didáticos de Língua Portuguesa para os anos finais do Ensino Fundamental. E-mail: leciocordeiro@editoraconstruir.com.br

 

Ilustrações: Marina Guerra

 

cubos