Edição 121

Matéria Âncora

Todos iguais?

Christianne Galdino

É normal que a gente acredite que o tão desejado sucesso profissional seja fruto exclusivo do mérito do indivíduo e que qualquer um que se esforce pode alcançar seus objetivos.

“Que vença o melhor!”, “Quem tem competência se estabelece!”. À primeira vista, essas afirmações seriam facilmente aceitas como verdade, principalmente porque o mercado de trabalho e o próprio sistema capitalista são um estímulo constante à competitividade. Então, é normal que a gente acredite que o tão desejado sucesso profissional seja fruto exclusivo do mérito do indivíduo e que qualquer um que se esforce pode alcançar seus objetivos. Esse conceito se chama meritocracia e apareceu pela primeira vez na obra de Michael Young, A ascensão da meritocracia, que descrevia uma sociedade igualitária, onde o acesso à educação de qualidade era definido exclusivamente pelo esforço individual de cada pessoa. O livro foi publicado em 1958, mas o tema continua levantando muitas discussões até hoje, principalmente em contextos marcados pela desigualdade social, como é o caso do Brasil.

Ver alguns dados pode ser útil para a gente entender melhor as diferentes realidades de vida dos brasileiros. Em relação à renda, por exemplo, as pesquisas mostram que o 1% mais rico da população ganha, em média, 34 vezes mais que os 50% que estão na camada mais pobre. E o aspecto financeiro é só um dos tantos abismos sociais que as pessoas têm que ultrapassar para alcançar seus objetivos de vida. Não podemos desconsiderar a questão racial quando sabemos que, nos 10% mais pobres da população, 75% são negros. Sem esquecer ainda a desigualdade de gênero, escancarada em vários níveis no nosso país. Em suas palestras, a advogada Raquel Preto, uma ativista da causa, apresenta dados reveladores dessa situação, como o percentual de apenas 7,5% de mulheres em cargos de chefia nas empresas brasileiras, que — e reforça ela — são mulheres brancas. Outro exemplo mencionado por ela, em que fica evidente a insuficiência e a falha das avaliações por meritocracia:

Em 1980, quando começa a ser permitida a participação de mulheres no concurso para juiz do Estado de São Paulo, apenas 15% das vagas são ocupadas por elas. Em meados dos anos de 1990, as regras dos concursos públicos mudam, e os candidatos passam a ser identificados apenas por um número, sem os avaliadores terem acesso ao nome e gênero; o resultado é que chegaram a 40% as mulheres aprovadas, somente na primeira edição depois da mudança da regra.

 


Para a avaliação por mérito ser eficaz e justa, o ponto de partida de todos deveria ser igual, independentemente da raça, do gênero e da classe.

Esses exemplos nos mostram que é preciso ter muito cuidado quando lidamos com o conceito de meritocracia, especialmente no campo da educação, ao mesmo tempo revelam o quanto ainda é necessário promover um debate sobre a relação entre meritocracia e desigualdade social. Para a avaliação por mérito ser eficaz e justa, o ponto de partida de todos deveria ser igual, independentemente da raça, do gênero e da classe. Então, parece lógico pensar que, para igualar condições que são originalmente tão distintas, a gente ia precisar de alguns instrumentos. Foi assim que começaram a surgir as cotas e outros mecanismos das chamadascriancas-estudando políticas afirmativas, com a intenção de corrigir as distorções desse sistema desigual.

As cotas, instituídas nos processos de seleção, por exemplo, têm conseguido garantir uma maior proporcionalidade entre os estudantes universitários de diferentes contextos, mas estão longe de ser consenso. Há ainda muita dúvida e polêmica envolvendo essa questão. E acho que a discussão persiste — depois de cerca de 20 anos do início da sua implantação aqui no Brasil — por causa de uma interpretação equivocada desse sistema de cotas. O primeiro passo para desfazer esse mal-entendido é saber que adotar um mecanismo de política afirmativa como esse não significa eliminar o mérito como critério de avaliação. O esforço, o empenho de cada indivíduo, continua sendo valorizado, o que muda é que, com a reserva de vagas para os menos favorecidos, a porta de acesso fica mais larga, e a ascensão social fica menos rara. Ou seja, a gente continua querendo que vença o melhor, mas quer que todos tenham condições similares para construir esse desempenho melhor.

Em um país como o Brasil, fechar os olhos para a desigualdade social não é opção. Então, quando a gente ouvir o termo meritocracia, é bom lembrar que a maioria tem que se esforçar muito para conseguir qualquer coisa, enquanto alguns poucos privilegiados têm acesso imediato à formação e informação de qualidade, sem precisar de esforço nenhum. Isso resume bem a relação entre meritocracia e desigualdade por aqui.

O esforço, o empenho de cada indivíduo, continua sendo valorizado, o que muda é que, com a reserva de vagas para os menos favorecidos, a porta de acesso fica mais larga, e a ascensão social fica menos rara.

Em uma sociedade como a nossa, onde sucesso é sinônimo de ter dinheiro ou fama (ou ambos, de preferência), os valores verdadeiramente humanos estão cada vez mais apagados. A gente até se comove e aplaude histórias de superação de pessoas que lutam contra as adversidades e conseguem ultrapassar os obstáculos, alcançando o tal sucesso, mas ainda temos dificuldade em aceitar que alguns largam bem na frente e que, portanto, qualquer julgamento baseado exclusivamente no mérito corre muito risco de ser injusto. Como diz a letra da música da rapper paulista Bia Ferreira: “Experimenta nascer preto, pobre, na comunidade, você vai ver como são diferentes as oportunidades”. Mesmo sem viver na pele, podemos fazer o exercício de nos colocar no lugar do outro, por mais diferente que seja a realidade dele. É isso que chamamos de empatia e que precisamos ativar o tempo todo para poder lidar com a ideia de meritocracia. E, aí, pergunto: você acha que a gente pode dizer mesmo que todos são iguais?

 

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Christianne Galdino é jornalista, antropóloga, pesquisadora e terapeuta energética

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