Edição 127

Como mãe, como educadora, como cidadã

Um desfile para esquecer

Zeneide Silva

Há algumas cenas que ficam para sempre marcadas na nossa memória, não é mesmo? Todos os anos quando chega a época do desfile cívico de 7 de setembro, eu me recordo de um episódio que aconteceu quando eu tinha por volta dos 11 anos de idade e ainda hoje me provoca indignação e constrangimento. Como eu gostaria de ter feito algo para evitar aquela situação! Como eu queria ter intercedido para que não se cometesse uma injustiça! Mas vivíamos em um sistema muito repressor, onde as crianças não costumavam ser ouvidas e não podiam contestar nenhuma ordem ou direcionamento, nem dos pais, nem dos professores, nem de qualquer outro adulto. Havia o entendimento de que respeito à hierarquia era o mesmo que obedecer incondicionalmente a tudo, sem nenhuma reflexão ou diálogo.

Como eu queria ter intercedido para que não se cometesse uma injustiça! Mas vivíamos em um sistema muito repressor.”

Sempre estudei em escola pública, e era comum que a gente participasse desses eventos, desfilando uniformizados e acompanhados da banda marcial do colégio pelas ruas da cidade. Naquele ano, a direção da escola decidiu inovar e fazer um pelotão de alunos vestidos com calça e camiseta brancas, que deveriam ser compradas pelos seus pais ou responsáveis para a ocasião. Acontece que, apesar de ninguém ter muito poder aquisitivo, alguns alunos eram notadamente mais pobres, como era o caso de uma colega minha, que também foi minha vizinha por muitos anos e que, além de inteligente, era muito dedicada e estudiosa.

127-como-maePois bem, no dia do desfile, chegamos todos com o traje branco combinado, com exceção dessa menina, que estava com a farda do colégio. Formou-se um rebuliço em torno dela, que expressou o seu desejo de participar mesmo assim. Professores e Direção conversavam, mas em nenhum momento houve acolhimento e escuta daquela que era, sim, uma aluna exemplar. Eu observava com um aperto no peito, esperando que algum adulto envolvido tomasse uma atitude, sugerisse que a menina pudesse, por exemplo, ter um lugar de destaque, conduzindo a bandeira do colégio. Eles só repetiam que ela não cumpriu o combinado e que daquele jeito iria atrapalhar o conjunto, estragar a imagem de ordem da instituição, por pura ignorância e falta de sensibilidade. A menina foi ficando cada vez mais triste, mas, mesmo sem o devido apoio, ela desfilou ao lado do pelotão de blusas brancas e azuis, acredito eu com vergonha de voltar para casa e dizer que não desfilou. Mesmo diante de tudo isso, foi uma vencedora por nunca ter desistido de si mesma.

Há outra coisa que me marcou nesse caso: parecia que nós éramos vistos somente como peças de um conjunto e que a que destoasse seria descartada, como aconteceu com minha colega. Quando mais tarde me tornei professora e mãe, sempre cuidei para que cada aluno, cada criança do meu convívio, fosse tratada na sua singularidade, com respeito e atenção a suas características e talento pessoais. Assim, temos mais chance de não cometer injustiças ou atitudes excludentes, fazendo da escola um ambiente acolhedor que realmente possa oferecer oportunidade de desenvolvimento a todos os estudantes, sem exceção.

Na vida, a gente conhece pessoas que são muito apegadas às regras e normas (não que elas não sejam necessárias) e não toleram nenhum milímetro de desobediência ou desvio do que foi planejado. Mas, na minha jornada, aprendi que a flexibilidade e a resiliência são qualidades muito mais importantes e eficazes no processo de formação do que rigidez e obediência, e essas qualidades são verdadeiras joias para quem se propõe a educar. Voltando à cena marcante daquele 7 de setembro, proibir a aluna de participar do desfile trouxe benefício para alguém? Definitivamente, não. Se tivessem acolhido a menina e encontrado juntos uma solução criativa, além de terem uma prática verdadeiramente inclusiva, aqueles professores teriam marcado positivamente a memória não só dela, mas de todos nós.

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