Edição 118
A fala do mestre
Você vende aulas?
Lécio Cordeiro
Certa vez, estava eu ainda na faculdade de Letras quando tive de cursar uma disciplina bastante indigesta. Na grade, chamava-se formalmente Literatura Brasileira 3.
Não era indigesta propriamente pelos conteúdos estudados, pois se referiam à nossa produção literária contemporânea. O problema era a didática mal temperada da professora que a ministrava. Eu me questionava como uma professora titular de uma universidade federal, com o mais alto salário da docência no nosso país, “condenada” a trabalhar com o que gostava e ao que tinha se dedicado durante toda a vida acadêmica, poderia ser tão amargurada em sua prática de ensino. Esse era seu padrão, um padrão de frequência negativa.
Em outra ocasião, quando me matriculei em uma academia, o professor pediu que o seguisse enquanto preparava minha ficha de exercícios. Mostrava os equipamentos e dizia: “Faça três séries de dez”. Nos dias seguintes, percebi que ele indicava os mesmos exercícios para todos os alunos. Independentemente de sexo, doenças preexistentes, limitações físicas, para o adolescente musculoso ou a idosa mais sedentária, ele dizia: “Faça três séries de dez”. Esse era o seu padrão, um padrão único.
Por fim, quando fiz uma especialização em Linguística e Ensino, tive aulas com um professor “excelente”. As aspas aí têm um propósito. Sua disciplina tinha como objetivo ampliar a percepção de professores que, como eu, buscavam levar para a sala de aula os pressupostos teóricos da linguística, sempre de forma prática, clara e objetiva. Além de trabalhar no Ensino Superior, era professor na Educação Básica, dividindo-se entre a rede privada e a pública. Trazia inúmeros exemplos de como podíamos levar para a sala de aula conhecimentos científicos restritos ao biotério acadêmico. Perguntei se ele conseguia aplicar toda aquela criatividade na escola pública. Com pesar, disse que não e complementou: “Na escola pública, eu quase sempre faço ditado, porque é a única coisa que os alunos conseguem acompanhar”. Esse era o seu padrão, uma mistura dos outros dois.
O que há em comum entre esses professores? Bem, o mais importante é que nenhum deles é, efetivamente, professor. São vendedores de aula. Na metáfora corriqueira, constroem muros, não pontes. Estão labutando na profissão errada. Ser professor é uma das tarefas mais nobres que um ser humano pode abraçar. Falo isso sem o romantismo que marca o senso comum. Fique tranquilo que não vou contar o boato que diz que, no Japão, o único profissional que não precisa se curvar diante do imperador é o professor. A docência é uma escolha nobre porque envolve, em boa medida, atitudes altruístas, como dedicação, entrega, abnegação. Por esse motivo, é uma ocupação difícil e desgastante e, naturalmente, demanda superação e boas doses de equilíbrio emocional. Ou você não lembra o porquê de nos aposentarmos mais cedo que outros profissionais?
A necessidade de superação e equilíbrio emocional perpassa toda a atividade docente. Um exemplo simples: levante a mão quem tem 3 aulas semanais por turma. Em 40 semanas, são 120 aulas no ano, 100 horas ao todo. O que você deve fazer nessas 100 horas? Essa é a pergunta mais óbvia. No entanto, há outras, mais densas, inseridas aí: Qual será o currículo? Você deve seguir à risca o livro didático? Como será a avaliação? Qual será o padrão? O que a coordenação, a direção e os pais esperam de você? Essas questões estão inseridas no nosso dia a dia, mas não paramos para refletir sobre elas. E não refletimos porque, simplesmente, não temos tempo para isso. Conseguem ver o problema? É evidente que sim: nós vivemos esse problema. Se ele me paralisar, entrarei em uma frequência negativa e não farei nada. Se eu pensar que ele é muito maior que eu, apenas repetirei um padrão único, porque, afinal, não posso fazer nada para mudar a realidade: escreva de um até cem, arme e efetue, complete as lacunas, faça três séries de dez.
Meus amigos, é lógico que teremos uma vida mais fácil trabalhando em equipe e lidando com os desafios de maneira saudável, isto é, equilibrando nossas emoções e tendo consciência de que possuímos limitações, mas não devemos desistir de superá-las. Ou seja: o caminho é formação continuada e preparação psicológica. Precisamos rever nossa prática constantemente e realinhar nossos objetivos. Os alunos se perguntam, o tempo inteiro: “Para que eu preciso aprender isso?”. Podemos até não pensar sobre isso, mas eles também têm seus próprios conflitos, seus limites e seus desequilíbrios. Cotidianamente, defendem seu direito inalienável ao egoísmo absoluto. Cabe a nós e às famílias cortar-lhes os excessos. O problema é quando os excessos estão nos tutores também, sobretudo na rede privada. Qualquer ação nossa no sentido de apontar esses excessos é entendida como intromissão, interferência, e essa intolerância está na base daquela superioridade patriarcal que muitos pais exumam sempre que seus “valores” são questionados: “Eu pago o seu salário!”, “Você não é pago para educar?”, “Você sabe com quem está falando?”. Aí vem, novamente, o trabalho em equipe: o alinhamento entre os professores, o apoio da coordenação, a clareza do projeto político-pedagógico.
Meus amigos, vivemos uma mudança de paradigma. Por muito tempo, focamos nos conteúdos, nos objetos de conhecimento. Agora, o foco deve ser no desenvolvimento de competências e nas habilidades, que são, em essência, processos. Se continuarmos insistindo apenas nos conteúdos, estaremos vendendo aulas e erguendo muros. Os alunos têm toda razão em se questionar sobre a utilidade daquilo que ensinamos — afinal para que precisam diferenciar um adjunto adnominal de um complemento nominal? Como o objetivo é muito limitado, não se sustenta. Mas se eu mostrar que, conhecendo esses termos, eles poderão defender melhor suas opiniões ou contar uma história de forma mais envolvente, o horizonte se amplia ao infinito. O objeto, neste caso, não é o conteúdo, é a habilidade. Quero dizer, o aluno que apenas memoriza conceitos será um incompetente em diferentes aspectos da sua vida no futuro — não saberá se expressar em uma entrevista de emprego e, por não conseguir se expressar, ficará desempregado ou vivendo de subempregos. É lógico que esse ciclo não é predeterminado e envolve muitos fatores, mas não pode ser ignorado, principalmente no que se refere aos alunos das classes mais baixas. Não é porque os alunos têm dificuldades que a solução é fazer um ditado. Isso não é remédio, é placebo e autoengano. É dar-lhes balinhas de açúcar e fazê-los acreditarem que estão alimentados.